top of page

ENCANTAMENTO X ESPANTO


O que pode fazer com que uma criança, um adolescente ou, até mesmo um adulto, se apaixone pelo conhecimento? E, aqui, paixão representa aquele sentimento capaz de fazê-lo abrir mão de momentos de lazer ou de descanso para estudar, buscar soluções para problemas desafiadores ou simplesmente querer saber mais

(e procurar respostas) sobre determinados temas. “Um professor motivador”, muitos responderiam. Mas, quem é esse mestre capaz de fazer com que o aluno queira saber mais – e não se contente com o que é apenas necessário? Certa feita, preparei cuidadosamente uma aula, quando ministrava Filosofia num curso de graduação em Pedagogia. Ficou simplesmente maravilhosa. E os alunos, de fato, se encantaram com o tema e a abordagem. Participaram o tempo todo, com qualidade. Após momentos de uma discussão deliciosa, perto do final da aula, uma aluna da primeira fila me pediu para “fechar logo a aula” pois não se aguentava de curiosidade sobre o desfecho daquele debate. Não tardei em resolver suas dúvidas e apresentei o grand finale. Todos ficaram ainda mais maravilhados e a aula foi fechada da melhor maneira possível – pelo menos, foi o que pensei. Deixei a sala com a alma lavada e aquele ânimo que temos quando sentimos que nossa aula valeu a pena. Pensava que havia plantado a sementinha da paixão, que faria com que a maioria passasse a semana envolvida com o tema. Na semana seguinte, porém, entendi que me equivocara enormemente. Ao perguntar sobre quantos haviam lido o texto suplementar que indicara, percebi, para minha surpresa e desalento, que ninguém havia se debruçado sobre o tema. Ninguém! A discussão maravilhosa, que foi capaz de fazê-los se encantar por um determinado tema da Filosofia, parecia ter morrido naquela mesma noite. Onde estavam aqueles alunos que ficaram maravilhados? Afinal, “a aula havia encantado a todos”, me dissera, animadíssima, a coordenadora, no dia seguinte. Mas, que ânimo era aquele que, em menos de sete dias, não conseguiu fazer com que um único aluno se dispusesse a rever e aprofundar o tema? A aula fora ótima! Participação total! Encantamento! O que havia saído errado, então? Ao indagar o s alunos, ouvi, entre outras desculpas - a maioria havia me alegado ter várias ocupações paralelas -, que a aula tinha sido ótima e que não necessitaram de mais nada. Estavam satisfeitos! Agora, bastaria darem uma estudada para a prova e tudo sairia bem. Claramente percebi que havia dois objetivos distintos. Da parte deles, o importante seriam as boas notas na prova – e, de quebra, ainda desfrutaram de um momento delicioso, pensando e dizendo coisas com que nunca, nem sequer, sonharam. De minha parte, não queria que se preparassem apenas para a prova. Aliás, nem pensara nisso quando planejei a aula. Vislumbrava estudantes pensando, buscando novas respostas e – o que é melhor – novas questões. Gente querendo encontrar novos caminhos de percepção do mundo. Gente que se transformasse a partir da aula e que projetasse essa transformação no mundo. Gente querendo cada vez mais conhecimento! Afinal, para onde escoara todo aquele encantamento? Meses depois, naquele mesmo ano, vivenciando frustrações desse mesmo tipo e não sabendo como mudar a situação, aconteceu um fato que mudaria radicalmente minha percepção e minhas aulas. Num desses debates cuidadosamente planejados e articulados, os alunos estavam em clima de êxtase, já esperando pelo “fechamento” da aula, quando a solerte coordenadora entrou na sala para dar um aviso. Lembro-me muito bem: iria informar aos alunos que, no dia seguinte, não haveria aulas em razão de uma reunião. Apesar de contentes com a notícia, viram, frustrados, que os dois ou três minutos de conversa com a coordenadora haviam lhes roubado os últimos instantes da aula. Isto significava que o “fechamento” da minha aula teria de esperar até a semana seguinte para acontecer. Alguns não pareciam frustrados, mas havia boa parte da sala querendo uma palavrinha ou outra sobre como o dilema criado se resolveria. Não podendo finalizar em respeito ao professor da aula seguinte que chegava, fiz apenas uma indicação de um livro onde encontrariam uma pista para que o mistério fosse desvendado. Tratava-se de um posicionamento filosófico de um autor – Sartre, para ser mais exato - sobre certa questão filosófica, e o livro indicado era um manual de filosofia, o qual discorria também sobre o pensamento sartreano. Saí sem grandes expectativas, pois sabia que uma semana – ainda mais com um feriado no meio – era o suficiente para fazer dissiparem-se todos os amores que a Filosofia ou qualquer outro campo do saber pudessem despertar. Na semana seguinte, já havia me preparado para terminar a discussão sobre o tema anterior e preparara inclusive um novo assunto para a discussão da noite. Porém, não foi possível levar a cabo meu planejamento. E isto por uma simples razão. Três alunas, que haviam procurado as respostas no texto indicado, traziam, mais que soluções, novos questionamentos sobre Sartre. E o que é mais interessante: haviam buscado novas fontes para tratar as minhas e as novas questões levantadas. Em poucos minutos, conseguiram mobilizar e agitar toda a turma e a aula foi muito mais rica do que jamais pudera imaginar. E fui quase que um consultor eventual, pois as meninas pareciam querer dirigir a aula. Falavam com fluência e embasadas pelos textos todos que haviam lido. No final, não deixei de fechar a aula, mas foi muito, muito além do que previra. A aula dera frutos e três pessoas – e mais algumas que ficaram seduzidas pelo brilho dos olhos das primeiras – passaram a amar e (pasme-se) ler Sartre – por curiosidade e prazer. Pensei, naquela noite, que talvez uma pequena luz havia se acendido. Sim, pois, se encantamento não sobrevivera, um outro fator havia aparecido. O incômodo. Ou, por que não dizer, o espanto! Naquele momento, lembrei-me dos dizeres de Aristóteles sobre o saber filosófico surgir do espanto. E pensei que se espantar não é o mesmo que se encantar. Afinal, qualquer beleza pode nos encantar, mas não nos intrigará se já nos for apresentada pronta e acabada. O mundo narrado nas suas curiosidades e belezas nos fascina. Mas, somente quando nos deparamos com situações que nos incomodam e nos tiram o sossego, é que nos mobilizamos para tentar saber de suas verdades. Em outras palavras, somente quando algo nos causa espanto é que passamos a querer dominá-lo e desvendá-lo de fato. O humano sempre se espantou com as situações fantásticas e enigmáticas da natureza – tempestades, o dia e a noite em períodos regulares, a própria morte e tantos outros fenômenos. Mas, o elemento mais forte sempre foi o fato de não possuir respostas imediatamente à mão. E isto fez com que tentasse desvendá-las a qualquer custo, fosse buscando respostas nas mitologias, nas religiões ou, mais tarde, usando somente a razão e o mundo natural observado como material e equipamentos de investigação. Afinal, a necessidade de compreendê-las, até mesmo para dominá-las, causava inquietação e tirava qualquer tranquilidade. Espanto pode ser entendido como sobressalto, susto ou, até, assombro perante algum fato. Espanto acontece não só pelo encantamento, mas também pelo desassossego por não se dominar as causas, os porquês, as mais variadas (e possíveis) decorrências. Não posso deixar de pensar na situação tão comum da pessoa que tem diagnosticada para si uma enfermidade um pouco mais séria que o comum. Sem que lhe seja ordenado ou sugerido, parte para uma investigação minuciosa sobre a tal doença. Pesquisa, consulta várias fontes, compara-as. Tudo deve ser muito bem entendido. E é comum nos admirarmos com a fluência com a qual a pessoa fala sobre sua enfermidade. Não se contenta com o conhecimento superficial, mas quer saber muito. Quer saber tudo! De alguma maneira, os grandes pensadores (cientistas, filósofos) devem ter sido tirados de seu estado de conforto, quando se espantaram com alguma situação da natureza, do ser humano ou do que quer que seja. Saíram do conforto porque as respostas não lhes foram sopradas por ninguém. Se formos procurar na história da vida de gente como Galileu, Newton ou Einstein, veremos que, apesar de brindados pela vida com grande inteligência, somente lograram grandes feitos porque, lutando contra empecilhos de todos os lados, puderam sanar boa parte do espanto que os fenômenos da natureza lhes trouxeram. Sem dúvida, a interrupção despretensiosa da coordenadora me abriu um novo e importante caminho. A partir daquele dia, comecei a não dar mais as coisas prontas para os alunos. Além disso, tornei o enfoque dos temas mais complexo. Ao encantamento possível, passei a colocar elementos de desassossego, de incômodo, de espanto. Mais que espetáculos para encantar, minhas aulas passaram a ser desafios, enigmas a serem desvendados. A partir dali, pude chegar nas semanas seguintes e perceber que pelo menos alguns alunos da turma haviam se debruçado sobre meus mistérios. É verdade que deixei de ser unanimidade. Alguns passaram a me ver como o sujeito que não facilita as coisas. Não era mais o “amigão”. Afinal, trocara o encantamento pelo espanto. Mas, as aulas estavam sempre concorridas, principalmente no seu início. E descobri uma outra coisa: passei a trabalhar menos. No início de cada aula, para “fechar” as discussões, sempre apareciam jovens pesquisadoras repletas de argumentos, cheias de vontade e tratando o meu tema como a um fenômeno gigantesco e fantástico. Ou, penso eu, hoje, como a uma doença incurável. É isso! E talvez elas próprias nunca mais tenham se curado daquele desejo de buscar respostas a qualquer custo. Quem sabe não estejam doentes de paixão?

*Publicado no Site: abcdislexia.com.br

Posts Em Destaque
Posts Recentes
Arquivo
Procurar por tags
Nenhum tag.
Siga
  • Facebook Basic Square
  • Twitter Basic Square
  • Google+ Basic Square
bottom of page