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ENTREVISTA COM LIDER DA OCUPAÇÃO DE EX-ESCOLA ESTADUAL DE RIO CLARO


Uma tarde de trabalho como tantas outras. Montanhas de textos para ler e a agenda sempre apertada com artigos, provas e aulas a preparar. Uma segunda-feira apertada, como sempre. E, apesar da correria, a velha sensação de que tudo andava na mesma. Porém, minha labuta sossegada foi despertada. Chacoalhada! De repente, saí da mesmice e fui cair num antigo ambiente, que já nem sonhava poder rever. Minha antiga escola primária. O antigo Grupo Escolar Irineu Penteado – hoje núcleo tecnológico estadual -, na cidade paulista de Rio Claro. Lugar onde aprendi a dar as primeiras linhas, os primeiros pensamentos mais profundos, os voos iniciais de minha empreitada filosófico-matemática com a qual convivo até hoje. Minha querida e velha escola, colada à casa em que vivi grande parte de minha vida, me abriu as portas. Mas, não foi para aula, palestra ou reunião pedagógica. Foi para conversar com jovens estudantes, que desde a última sexta-feira, estão ocupando o antigo prédio onde a minha jornada intelectual teve início.

Em meio a tantos desmandos por parte de nossas autoridades que vêm sucateando a educação de São Paulo, eis que surge, bem na escola em que iniciei, em 1967, meu curso primário, uma rajada de esperança. Lá estavam eles! Jovens secundaristas, simpáticos, pacíficos, inteligentes e incomodados com a injustiça que se deflagra contra aqueles que somente gostariam de estudar e poder dar um sentido maior a suas vidas. Após me identificar, fui recebido com muito carinho e falei com um dos ocupantes, o Henrique, presidente da União Municipal dos Estudantes Secundaristas de Rio Claro.

Jovem politizado e de boa fala, Henrique me contou como acontecera a decisão de ocupar aquele núcleo. Relata que, “desde sexta-feira, dia 20, às 4 horas da tarde”, estão no prédio do antigo colégio. Henrique conta que, nesse dia, “havia apenas duas funcionárias”. “Neste prédio gigante! Parece que só elas trabalham aqui, revezando com mais duas senhoras”. Disse que as duas ficaram muito amedrontadas, temendo que tivessem vindo para roubar alguma coisa ou, até mesmo depredar. “Foi só quando dissemos que seríamos responsáveis por tudo o que houvesse lá dentro, que se acalmaram”, nos conta Henrique. E diz que uma delas se retirou, desejando-lhes muita sorte, enquanto a outra fez questão de ligar para o “dirigente de ensino de Limeira, que é o Beto”. Ele teria vindo imediatamente e os teria acusado de invasão, chegando a trancar uma das portas, deixando boa parte dos jovens do lado de fora, os quais “começaram a fazer barulho para chamar atenção das pessoas”. “Entretanto”, conta, “o pessoal daqui de dentro conseguiu perceber uma trinca na porta e puxou. Aí, conseguimos entrar e ocupar de novo”.

Henrique nos diz que, de lá para cá, têm sofrido ameaças de gente da cidade que não concorda com seu movimento, mas que recebem apoio da maioria das pessoas com quem conversam. Perguntei, então, quem eram essas pessoas de quem sofrem admoestações; se seria gente ligada às administrações da cidade; mas ele garantiu que não. Lamentou serem “pessoas da própria cidade” que, não concordando com seu movimento já os ameaçaram de que virão para tirá-los dali, “na pancada”. Apesar disto, revela bastante ânimo com o impacto que a ocupação pode causar na opinião pública da cidade. E diz que têm recebido muitas doações de cobertores, colchões e alimentos, os quais serão doados quando desocuparem. Pretendem também fazer um “piquenique público no jardim”.

Henrique e seus colegas ainda estão estudando os próximos passos de seu movimento. A ideia de ocuparem o prédio do núcleo tecnológico surgiu por não considerarem viável fazê-lo em uma escola, pois isto implicaria em “impedir os alunos de terem aulas, e os professores de darem aulas”. Para que isso fosse possível, emenda, “teríamos de criar, o dia todo, atividades pedagógicas, aulas públicas, debates etc. E não sabíamos se conseguiríamos gente suficiente para dar conta de todas essas atividades”. Além disso, afirma, “este núcleo tem uma tremenda estrutura, está cheio de coisas que não estão sendo utilizadas, é um núcleo tecnológico em que trabalham só duas funcionárias. Tanto é que, nesses dias em que estamos aqui, passam muitas pessoas, que nunca haviam entrado no prédio e ficam impressionadas com a quantidade de material que não é utilizado. Gente que diz que é certo o que estamos fazendo”. E, é claro, eu quis saber mais sobre a ocupação. O que querem estes estudantes? Por que esta e as demais ocupações nas escolas públicas estaduais? Quais os fins desse ato político? E Henrique me pareceu bastante sereno quanto a isso.

“Tem tudo a ver com o futuro de nosso país! Tem a ver com o sonho de todos os jovens. Todos queremos poder fazer boas faculdades, ter futuro. Nós não queremos ser marginalizados. Muito pelo contrário, queremos ser respeitados. Queremos ter o direito de poder tirar nosso rolê de fim de semana, de ter atividade cultural para ir, ter teatro . . . E nosso governo estadual não tem colaborado em nada com isso. Pelo contrário: só precariza nossa educação, só limita o trabalho do professor (com aquele ‘caderno do aluno’, né?). E nós estamos cansados deste sucateamento, estamos indignados. Indignados com este prédio que está aqui parado, com os recursos que estão parados, com as salas superlotadas. A questão da educação tem tudo a ver com a gente. Queremos entrar na faculdade, ampliar as cotas nas universidades públicas . . . A gente quer tudo isso! E o governo do estado, nestes vinte anos, só vem sucateando a educação pública. Não construiu nenhuma universidade nestes vinte anos, só fechou sala de aula, só fechou escola (aquela ‘organização’, que a gente chama de desorganização) . . . A educação pública deveria ser boa para nós: um lugar agradável para o estudante, sem grades, com algo mais além desse ‘caderno’. Fica só nisso! Alunos querem aprender sobre outras coisas, sair, fazer excursão, quer recurso (não só giz e lousa). ”

Perguntei, também, sobre suas famílias. Sobre como estavam vendo aquela atitude deles. Ele me disse que nunca viu tanta gente próxima o apoiando. Falou que, desde que está no movimento estudantil, nunca recebeu tanto apoio. Afinal, é “a primeira escola a ser ocupada em Rio Claro”. E que as mães dos meninos têm vindo visita-los e dar apoio; e demonstram confiança neles. Também têm recebido a visita de antigos professores, nessa cadeia de apoios.

E Henrique fez questão de dizer que, apesar do cunho estadual de seu protesto, este ato vale também como forma de se colocar contra o andamento da política em geral, no nosso país. “A gente também se posiciona em questões nacionais”, afirma. “Já vimos”, observa, “que existe um golpe acontecendo. Uma presidente eleita pelo povo foi deposta e já deu pra ver como se comporta o governo Temer. É claro que querem acabar com as investigações . . . A gente tem essa noção. ”

Ao final, eu disse a ele que, sendo profissional e pesquisador da Educação Matemática Crítica, tinha um desejo grande de saber em que o aprendizado da Matemática os ajudou nessa tomada de consciência e na própria decisão de realizar a ação. Henrique afirmou que, apesar de ser “das humanas”, sente que é muito útil o que a matemática nos traz em termos de aprendizado sobre o mundo. Ajuda a criar um sentido, sim! Ela nos “faz pensar”, disse, “nos ensina a sermos lógicos, a criticar! ” “E, nesta ocupação”, disse, “o aprendizado de matemática foi fundamental, nos ajudou a planejar . . . foi tudo muito bem calculado. ”

E, para terminar a entrevista, pedi que ele mandasse, em seu nome e no de seus companheiros na ocupação, uma mensagem a todos nós, educadores e educandos, que, assim como eles, se indignam com o descaso de que somos todos objetos. Aqui vai, então, o recado do Henrique.

“Eu quero dizer ao pessoal, principalmente para os estudantes, e para a população em geral, que a gente tem que se organizar, não se conformar com nada, muito pelo contrário. A gente tem que se indignar com o que está acontecendo. É uma situação muito crítica no nosso país; no nosso estado, também. Então, a gente tem de dar respostas a isso. E a nossa resposta é nos organizando. A juventude e a população conseguiram derrubar uma ditadura lá atrás; e a gente não pode deixar que haja retrocesso, novamente. A gente conseguiu ter evolução, a gente consegui ter jovem negro na universidade pública . . . A gente tem de ampliar isto! O jovem de escola pública tem de estar no espaço público, tem de estar na política. Hoje, quem está na política, que representa o jovem, já tem 60 anos nas costas. O que esse cara sabe sobre a juventude de hoje? A gente sabe o que a gente quer! Nós queremos ser realmente representados. É bom que todo mundo venha somar, nesta luta. Não é só por nós, é por todo mundo! Vai ter mudança para todo mundo. O que está acontecendo hoje atinge diretamente a gente. Então, vamos nos organizar e ir à luta”.

Nossa conversa praticamente terminou aí, mas ficou o compromisso de nos vermos sempre que possível; e me comprometi a levar sua causa e seu movimento a todas as pessoas que puderem ser sensíveis às reivindicações de nossos estudantes de escola básica pública.

À saída, emocionado com aqueles poucos minutos que vivera, olhei calmamente o prédio em que entrara e saíra tantas vezes no passado. Naquele tempo, levava, inconsciente, uma alegria que vinha de um projeto quase natural de felicidade. Um sonho de vida melhor e de realização. Na minha época de estudante do Irineu, o mundo era um sonho deslumbrante. Talvez, aqueles jovens estivessem, na sua luta e fé no futuro, repetindo meus sentimentos antigos. E senti uma leve inveja de todos eles. Afinal, teriam, ainda, bastante tempo para desenhar seu novo mundo. Quando ali estudei, aprendi a história como sendo algo distante, feita de homens barbudos que pareciam ter nascido para terminar nos livros. Agora, sentia-a muito próxima de mim. No mesmo prédio, de repente, a história havia descido das estantes.

Quando cheguei próximo da esquina, percebi o olhar curioso das pessoas que por ali passavam. Miravam as faixas nas janelas, as correntes no portão, e seguiam seus caminhos. O que estariam pensando? Será que viam aquilo como coisa boa? Ou será que, como eu, há 45 anos, viam a história como algo distante, quase inacessível?

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