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DE REPENTE, APRENDER


Um crítico ferrenho dos caminhos impensados da Educação à procura de rumos alternativos. Talvez possa me definir assim, nos últimos vinte anos. Deixei uma carreira de certo sucesso na engenharia para me dedicar à vida de professor. “Uma escolha de doido”, disseram alguns. Outros, mais cuidadosos, diziam: “você tem muita coragem”. Provavelmente as duas assertivas estejam corretas e se complementem. Afinal, meus dias vazios foram substituídos por muita ação quando decidi pela troca. Queria gozo, relaxamento; e veio adrenalina, confusão. Não tivera prazer com a engenharia e, na carreira de professor, acabou-se de vez o sossego. E tudo porque, como professor de Matemática em colégios particulares, acabei me deparando com as “correntes pedagógicas pragmáticas”[1]. Cheio de sonhos, em muitos anos como professor particular e em colégios pequenos e alternativos enquanto exercia a engenharia, acabei tendo um choque quando entrei de cabeça na nova profissão. As escolas não queriam ensinar matemática! Queriam – isso, sim – que seus alunos se sentissem acolhidos na sua mais importante demanda de estudantes: aprovação no vestibular! Então, passei a ensiná-los, não a ver o mundo a partir da língua dos números, mas a fazer provas. Como não cair em pegadinhas. Como resolver uma equação logarítmica do jeito que o corretor de provas dissertativas valoriza mais. Como ler rapidamente um enunciado e analisar as alternativas, eliminando as absurdas e escolhendo, entre as prováveis, a mais plausível . . . E veio aquela sensação de arrependimento. Depois de alguns anos, acabei capitulando e, sem que percebesse, já fazia provas capciosas e cheias de artimanhas para que meus pupilos pudessem driblar as emboscadas no dia do vestibular. De jovem idealista, transformei-me em velho pragmático precoce. Porém, como acontece às vezes, a providência sentiu pena de um errante desavisado e resolveu me dar uma mãozinha.

Certa feita, preparava uma prova de múltipla escolha para alunos de segundo ano do ensino médio, quando uma falha em meu sistema de atenção determinou um erro fatal. Ao digitar a prova no formato exigido e com as diagramações requeridas, acabei me esquecendo de apagar os gabaritos ao final do caderno de questões. E a prova foi para o forno. Ficou pronta na manhã da avaliação, sendo o pacote colocado no meu armário. Sem mais, levei-a à sala onde os alunos me esperavam prontos para mostrar que os treinos rigorosos os fariam ter um desempenho muito bom na partida final. Foi quando, ao correr os olhos pela prova, deparei-me com aquela tabela cujo papel seria me ajudar na hora da correção. Aí, o velho frio na barriga!

Antes que pudesse decidir o que fazer, pensei em tudo. Uma metade de minuto pareceu conter um tempo imenso. “Peço para que apaguem?” “Arranco a última página?” “Preencho, eu, as outras alternativas para que não saibam qual a certa?” E foi justamente quando dialogava desesperadamente com meu lado consultor que me deparei com uma cena comum, mas que, naquele momento, me fez despertar e ter uma das maiores ideias de minha história como professor.

Uma garota ensinava um colega e lhe dava dicas para a prova. Pude ouvi-la dizendo que “a solução de certa equação não poderia ser 3, pois este número anularia um denominador, e isto é proibido nos números reais”. E, de repente, quase deixei de ser ateu, pois pareceu-me que uma voz suprema me ditou tudo o que deveria fazer naquele momento. Um verdadeiro milagre! E, sem alterar a expressão, esbanjando segurança e sabedoria, saí com esta:

- Alunos, esta será uma prova diferente das outras. Exigirá muito mais de vocês. Como poderão ver, todas as alternativas corretas já estão marcadas abaixo, na última página. Vocês já receberão as questões com o gabarito completo. Porém, hoje, o trabalho é diferente do convencional. Cada um escolherá um colega, vão fazer a prova em dupla, e com consulta livre. Será permitido o uso de calculadora e, em cada questão, vocês vão argumentar matematicamente por que a questão escolhida é correta e por que as demais não são. Para avaliar seu trabalho, verificarei quem conseguiu explicar corretamente a veracidade da alternativa escolhida por mim e também por que cada uma das outras é falsa.

Acostumados a se deparar com atividades novas – já que nós professores sempre estamos inovando a fim de tornar nosso trabalho menos maçante -, os alunos partiram sem medo para a nova empreitada. O fato de poderem formar grupos e a possibilidade de consultar seus materiais – prática (esta) presente em praticamente todas as profissões, menos na de estudante – os tornaram mais alegres e confiantes. E as quase duas horas de prova – normalmente, um dos momentos mais silenciosos do dia-a-dia – foram preenchidas por discussões acaloradas e interessadas. Cada qual queria mostrar que sabia responder e tentava convencer o colega de que estava com a argumentação mais correta para cada alternativa. Aqueles que achavam que sabiam pouco recebiam as justificativas do colega mais preparado. Todos queriam acertar, como sempre. Porém, havia um ingrediente novo. Deveriam mostrar por que estavam certos naquilo que afirmavam ou negavam. Tinham de argumentar! Construir discursos! Construir um saber que pudesse ser compartilhado.

A partir deste dia, estipulei atividades parecidas com esta. É claro que a instituição não me permitiu fazer isto sempre. Afinal, o que está em jogo em nosso país é o vestibular. Porém, encontrei novas possibilidades de fazer meu trabalho mais feliz. E, por que não, criar ilhas de significado dentro daquele mar de falta de sentido que acabam sendo as aulas de matemática – pelo menos, para grande parte dos alunos. E, em meio a tanto condicionamento diário, de vez em quando eles brincam de pensadores. Sinto que aprendem mesmo! Não para um dia, para uma prova determinada, mas para muito, muito tempo de suas vidas. Afinal, o objetivo maior daquela atividade foi mostrar que sabiam matemática, e não como se responde corretamente este ou aquele tipo de questão.

Hoje, indico e falo muito sobre este recurso aos meus pares. Muitos não podem usá-lo para provas de grande peso nas notas da turma. Não importa. O bom disso tudo é que, em meio a tanta parafernália pedagógica imposta pelos interesses de nossa Educação, às vezes, para variar, eles até aprendem.

João Luiz Muzinatti

Novembro de 2016

[1] Obviamente, nada existe com este nome. Apenas quero me referir às medidas tomadas pelas escolas particulares para não perderem alunos.


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