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HISTÓRIA DE UMA DEMOCRACIA


Lembro-me muito bem da adrenalina do final dos anos 70 - e início dos 80. Ruas se apinhando aos poucos à medida que a nossa coragem se aliava a uma certa complacência dos tiranos. Pedíamos anistia, liberdade, democracia. Vivíamos um pesadelo e cultivávamos um sonho bom. A irreverência e a certeza eram nossas armas. As frustrações do dia a dia nos serviam de combustível para a jornada transformadora. E acreditávamos estar fazendo história!

O tempo foi passando. As coisas acontecendo. Não do jeito que sonhávamos, mas como nos permitiam que acontecesse. Lembro-me de passeatas, comícios, manifestações que nos enchiam de orgulho e esperança. Ao berrar em praça pública, sentia que dali brotava parte de um ruído estridente que haveria de fazer com que a ditadura tremesse. Porém, foi justamente de um projeto desta que a democracia nos veio à luz. Apesar de votação frustrada da emenda que pedia “diretas já”, povo unido, canções, artigos antológicos nos jornais, tivemos de esperar que um presidente civil só fosse eleito quando os mandatários assim o decidiram. E foi eleito pelo mesmo congresso nacional que servira ao regime por vinte anos. Só pudemos votar de fato para presidente quase cinco anos após tal eleição indireta de 1985 - a qual ainda acabou por nos trazer à presidência, apesar de uma grande mobilização em torno de alguém da oposição, um antigo líder do poder militar no congresso.

Mas, mesmo com todas as diferenças entre planos e realidade, lá estávamos nós. Antes mesmo da eleição direta, uma nova constituição: marco da democracia que já sentíamos na pele! Cada item da nova carta era debatido. Levávamos documentos para as pessoas assinarem, os quais seriam remetidos à assembleia constituinte, a fim de pressionarmos os representantes do povo. Queríamos algo moderno, embebido em justiça social e direitos humanos. Lembro-me de ter passado propostas de lei defendendo os direitos das mulheres: difícil: as pessoas relutavam em assinar qualquer coisa que desse mais poderes e liberdade às mulheres. No final, com ganhos e perdas, tínhamos nossa constituição. Uma democracia que já podia começar a caminhar.

Não foi um início tranquilo. Logo de cara um presidente eleito foi sacado – a velha mania da política brasileira parecia ainda não extirpada, porém pareceu-me à época – eu que também engatinhava na democracia - que fora de gosto geral.

Depois, tempos mais tranquilos. Presidentes eleitos e que foram até o final de seus mandatos. Uma emenda de reeleição estranhíssima aqui, um mensalão ali, privatizações muito pouco ortodoxas, de um lado, bolsas famílias que não poderiam alimentar nem os gatos das famílias, do outro... Paciência! Coisas de uma democracia que ainda dá seus primeiros passos. De um lado, a sensação de que pessoas saíam da pobreza. De outro, a incômoda percepção de que eram justamente os banqueiros a classe mais feliz com o salto que o país dava. A nova república estava sobrevivendo, e o maior período de estabilidade democrática do país já era o nosso. Sentia-me, de certa forma, vitorioso. Mas as coisas acontecem, na vida, como podem acontecer. Não há ideais, como diria Nietzsche. E o sólido desmanchou-se no ar.

Em 2014, uma eleição presidencial marcada por incidentes bastante fortes. Teve de tudo! Acusações, pessoas perdendo amizades, ataques virulentos nas redes sociais, patrulhamentos. Tivemos até um dos candidatos perdendo a vida após acidente aéreo – o que fez, diga-se de passagem, com que o panorama eleitoral se transformasse completamente. No segundo turno uma guerra. Após as apurações, vitória apertadíssima de um dos lados. A democracia seguia seus passos. Andava com dificuldade, mas mostrava-se viva. Porém, já estava ferida de morte!

De repente, relações nefastas entre políticos de situação e oposição, acordos explícitos e na calada da noite, lideranças se desentendendo e mudando de lado, acordos entre políticos e gente poderosíssima de nossa elite – como nossa história nunca deixou de registrar -, oportunismos, tudo isso e muito mais fez com que a jovem de 30 anos entrasse em coma e viesse a falecer. Depois de manifestações de rua bem diferentes das de 1984 – mais parecidas com as de 1964 – e de um verdadeiro show pirotécnico comandado pelo presidente da câmara dos deputados, a presidenta eleita pelo voto direto foi afastada do cargo por causa de umas tais “pedaladas fiscais” – o que se tinha para o momento, já que não cometera nenhum crime, a não ser o fato (que deveria ser julgado democraticamente na eleição seguinte) de não estar governando com base no que prometera. Em seu lugar, veio o vice-presidente, grande aliado da presidenta que, bandeando-se para o lado do famoso presidente da câmara, conspirou decisivamente para que a mandatária fosse deposta. A vontade de mais de 50 milhões de eleitores foi desrespeitada. As instituições caíram. E já não vivíamos mais num ambiente democrático.

De lá para cá, muito vem acontecendo. Direitos dos mais pobres, objetos de lutas de décadas, sendo dizimados; leis que retardam indiscriminadamente as aposentadorias de gente de todas as classes sendo propostas pelo governo e negociadas com o poder econômico à luz do dia; poderes imensos sendo dados a grupos ligados ao sistema financeiro (mais ainda), latifundiários, religiosos, moralistas de plantão, fascistas que só conhecem a morte como saída para os problemas; revisões absurdas em leis consolidadas como, por exemplo, a que proíbe o trabalho escravo; presidente, senador e outras figuras importantes sendo flagradas em operações da polícia federal e comprando (também à luz do dia) sua absolvição; ministros do supremo rasgando a constituição e libertando políticos e grandes empresários de condenações absolutamente óbvias; reformas educacionais voltadas para a desvalorização do senso crítico e a supervalorização da religiosidade; desprezo e riso por parte dos novos tiranos quando questionados. De repente, olho para trás e sinto saudade de quando saía às ruas pedindo democracia. E me entristeço porque, após tanta luta, tanta fé, tanta crença na senhora democracia, rezo hoje, tristemente, pela sua pobre alma. Aquela por quem esperamos por tantos anos nos deixa novamente.

E o Brasil passa a resolver seus problemas como sempre: autoritarismo, exceção, privilégios, truculência. Peças de teatro são proibidas, exposições fechadas, shows impedidos de serem realizados, educadores sendo ameaçados de demissão pelo que dizem, mesmo fora da sala de aula, famílias exigindo que a escola não trate de certos temas, que certos professores sejam afastados. Voltamos no tempo. E o pior: gente das novas gerações, muitos daqueles que não viveram os anos 70 e 80, defendendo a mão de ferro. Parece mesmo que, aqui, só há um meio de resolver problemas.

História triste esta nossa! Pelo menos, esta é a minha visão. Oxalá, esteja equivocado. Pode ser. É! Talvez eu seja ingênuo, ou sei lá o quê... Tomara! Porém, não consigo me esquecer de um fato. Logo depois da primeira eleição para presidente, conversando festivamente com um amigo mais velho, ouvi dele que: “pode ser que os canhões estejam desaparecendo apenas porque não serão mais necessários”...

JOÃO LUIZ MUZINATTI


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