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DE FELINOS, HUMANOS E FILÓSOFOS

Cena conhecida de muitos de nós! Aliás, creio que já me deparei com ela muitas vezes. Mas, desta vez, o ímpeto de pensar o mundo a partir de um recorte ínfimo do mesmo me levou a uma reflexão mais, digamos, encrencada sobre a vida. Sobre a minha, a sua, a dos animais, da Via Láctea ... Bendito ócio! É simples, vi um gato tentando apanhar um passarinho.

Após um café e longas matérias dos jornais de domingo, fui à minha caminhada. Pelo meu microéden, recoberto de muitas árvores, canteiros, pássaros e uma variedade enorme de animaizinhos (reconhecidos ou não), subia e descia as rampas tão queridas e enaltecidas pela minha cardiologista. Fazia questão de acelerar o passo na subida para sentir o prazer aliviado dos trechos de descida. Dava voltas e pensava – em tudo e em nada, como sempre. Mas certa cena – comum e vulgar, sem dúvida – me chamou a atenção.

Um gato de pelagem branca com manchas pretas, após uma espreita de alguns minutos, arriscou um bote contra um passarinho que cantava estacionado sobre um pequeno galho baixo de uma árvore muito alta. A ave, ao que parece, como a louvar sua saúde física e afirmar sua destreza, resolvera deixar a segurança das alturas para distribuir sua música bem pertinho do chão. Para mim, regozijo e regalo sublimes. Para o felino, comida boa e fresca a poucos metros. E, com toda sua astúcia instintiva e seu ótimo condicionamento físico – pelo menos, se me tomarmos como referência – saltou em direção ao corajoso passeriforme.

Pobre gatinho! Não só seu cálculo fora subdimensionado, como também esbarrou na esperteza volante da pequena ave. O salto do mamífero permitiu uma chegada a pouco menos que um metro do passarinho. Insuficiente! Este, entretanto, numa fração mínima de segundo voou firme e decidido para a parte mais alta do pequeno bosque. Parecia que calculara o ponto seguro onde deveria estar, e o instante exato de se evadir e se camuflar entre os galhos e as ramagens. Ao pobre gato restou agarrar-se ao tronco e organizar um retorno seguro ao chão. E, neste instante, seus olhos deixaram a ave para mirar-me com muita atenção.

Após o fracasso em sua empreitada, a ordem agora era se prevenir contra o humano intruso que o observava. Porém, aos poucos, vendo que já me afastara o suficiente, foi se descolando da árvore até uma aterrissagem tranquila. Mas, continuamos, por vários segundos, a nos fitar em silêncio. Até que ele se foi, certamente esperando receber novas oportunidades da natureza. E eu, “humano, demasiado humano”, fui substituindo a contemplação de um traço da dinâmica natural pelo bom e velho pensamento abstrato. Afinal, “aquela cena tem tudo a ver com a minha vida”. Ou, então, “viver é arriscar o tempo todo”! E, mais adiante: “quantos saltos no vazio, quanta aterrissagem forçada”!

O felino, usando o que possuía de melhor, ousou buscar algo mais valioso que aquilo que encontrava pelo terreno raso da vida: quis ir além! Não deu! Daí, parou e percebeu que a vida continua e que há mais com que se preocupar. Por exemplo, que nunca estará seguro nem realizado de fato. E nós, seres pensantes, que vislumbramos, planejamos e, muitas vezes, arriscamos, experimentamos também êxitos e fracassos pela vida. Possivelmente, o gato já teve (ou terá) êxito em empreitadas similares. E aprendeu que viver não é linear nem exato. Viver é dramático, é imprevisível – ou, talvez, ele já tenha percebido que sucesso e fracasso são, no seu conjunto, mais do que previsíveis. “E eu”, pensei, “muitas vezes não consigo compreender a lógica da vida, e custo a aceitar que certos saltos dão no vazio”. Não sei como explicar melhor tudo isso, mas aquele gato talvez saiba mais sobre seu mundo que eu (sobre o meu).

Ao “dominarmos” a natureza via razão, talvez tenhamos nos esquecido de entendê-la de fato. Sorte dos analistas! O felino, não tendo nada mais profundo que aprender, pelo menos não desaprendeu sobre sua doce e acolhedora natureza – ou, se preferirem, realidade. Ao fracassar em seu intento, tratou de cuidar do resto de sua vida. Aliás, nada mais existia, para ele, que o que haveria de vir dali por diante. E me lembrei do velho Sartre – vivam os animais, que não veem além do visível!

Felizmente para mim, o saudoso existencialista francês nunca parou de pensar. E uma de suas fórmulas foi que “o importante é o que faremos a seguir; o que passou não existe”. Os fracassos e as vitórias são da vida. Qualquer lamento nosso em direção contrária revelará desconhecimento acerca da existência e do mundo.

Uma vez, tive de ouvir de um pai de aluno que “a filosofia não serve para nada”. Pode ser, até, que ele esteja certo. Afinal, questionamentos e reflexões não produzem sopas, chás nem automóveis. Porém, quem sabe, de fato, para que serve o pensamento? Ou, até mesmo, para que, diabos, usamos tanto raciocínio?

Tenho um amigo que teve de iniciar um tratamento com antidepressivos por conta de uma promoção esperada que não veio; nem virá. Este sujeito preparou durante anos o salto. Ao ver que a presa se afastara, quase não consegue mais aterrissar. Então, me pergunto: será que reaprendermos a lógica dos felinos e aves não poderia nos ajudar a sermos mais felizes, ou, pelo menos, menos acabrunhados? Será que o que fizeram Nietzsche, Epicuro, Sartre e tantos outros não foi justamente rever e nos dar uns toques sobre a dinâmica do que não é mais racionalizável ou idealizável? Algo assim como esquecer o pássaro perdido e valorizar cada novo pedaço – que inevitavelmente virá – da vida?

João Luiz Muzinatti - 11 de novembro de 2018

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