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Carta desabafo

Oi, mãe!

Escrevo esta carta muito mais pelo que você pensava do que pelo que eu penso e sinto. Sim, pois, a meu ver, nunca a lerá. Mas como sempre tive um pressentimento de que deveria acreditar em você ao invés da ciência, da filosofia etc, então aqui vai. Nunca me vi com autoridade moral suficiente para discordar daquilo que você dizia. Apesar de ateu, sinto (mesmo) que sua consciência pode estar por aí (ou aqui) a me observar e me cuidar. Ou talvez seja apenas carência minha, sei lá! Mas, de qualquer forma, aqui vai! Quero lhe fazer alguns desabafos.

Mãe, por que nos educou assim?

Sim! Poderia nos ter dado outro tipo de criação. Poderia nos ter feito pessoas desencanadas para com a vida. Poderia nos ter ensinado que o mundo é dos mais espertos, dos mais frios, dos menos tolos. Mas, não! Desde cedo, nos ensinou a sermos encucados com as coisas. E eu – pobre de mim – levei isso tão a sério que até fui estudar filosofia. Já pensou? E pra quê? Para sofrer, mãe!

Lembro-me da minha infância. Você perdia seu tempo e, com seu exemplo, nos ensinava a perde-lo também. Enquanto todas as pessoas da rua davam moedinhas ou pão duro aos mendigos e pessoas muito pobres que nos abordavam, você ia bater papo com eles. E levava a gente junto! Chegava até a trazê-los para comer conosco à mesa, mãe. E a gente acabava gostando. Mãe, que diabos: você via humanidade onde ninguém via!

E as coisas que nos ensinava, então! Um rigor que não me deixava tranquilo nunca. Não queria violência, e até extrapolava, concorda? Nunca comprava bombinhas de São João pra gente. Dizia que eram coisas imbecis e perigosas, lembra? Uma vez, lembro-me de que peguei uma bombinha da caixa de um amigo, enquanto ele tinha ido atrás de uma pipa que caíra no outro quarteirão. Foi tão difícil abrir aquela caixinha e pegar algo que não me pertencia. Lembrava das coisas que me dizia: “jamais pegar algo que não me pertencesse”. Mas eu criei coragem e peguei, lembro bem! E aí, mãe, nunca lhe contei isso: a porra da bombinha falhou! Nem um som, mãe! Pensei em você, naquele momento. Fiquei triste pela falha da bomba, mas parecia aliviado pelo meu intento ter fracassado. É mole! Mas, só assim, confesso, não tive de olhá-la com cara de arrependido.

Nunca te contei, mãe, mas, anos mais tarde, recebi um convite para trabalhar de engenheiro numa fábrica de armas. E foi bem numa época em que as finanças andavam muito mal. Sabe o que fiz? Disse não, mãe! Porque sabia que as tais armas certamente não falhariam como a bombinha roubada. E eu seria coautor de muitas mortes. E teria de suportar ouvir sua voz - em sonhos, pensamentos intrusos -, o tempo todo a me jogar isto na cara. Fugi, mãe! Não tive a coragem dos bravos de hoje em dia que propagam as armas como alívio da humanidade.

E com as mulheres, então, mãe! Poderia ter me divertido muito, na infância e adolescência. Sim! Meus amigos combinavam de passar a mão nas meninas e, na hora “H”, eu, ao invés de fazer o mesmo, não suportava o terror nas caras delas e tentava defendê-las. Batia e apanhava quando podia estar me divertindo. E estragava a brincadeira de meus amigos. A verdade é que sofria com isso; e tive de esperar muitos anos até que alguma mulher me dissesse que queria, sim, que eu a tocasse. Sim, demorou muito! E ainda teve coisa mais chata, mãe.

Em 1988, já casado e vivendo das minhas próprias decisões, tive o prazer de poder participar diretamente da política em meu país. Mas, até aí, acabei me dando mal pela sua influência. É que recebêramos o direito de organizarmos abaixo-assinados que reivindicavam futuras leis para a constituição que estava em elaboração. A constituição do país, mãe! A dita “carta magna”! E eu fui ajudar, fui experimentar a sensação de cidadania. E havia muitos formulários para escolher que me atraiam: terra, trabalho, finanças, educação. Mas, sabe qual deles eu escolhi? O pior de todos: aquele que reivindicava direitos para as mulheres! E isso por que? Porque sempre nos deixou clara a situação de dificuldade em que viviam as mulheres neste país. E nos mostrava isto na prática. Você, minha tia e minha avó: duas viúvas e uma solteirona, sempre sendo tratadas de maneira menos importante do que acontecia com os homens. Nunca me esqueço de como era difícil conseguir alguma assinatura no tal documento. Direito ao aborto, a ganhar mais, a ter a visibilidade dos homens? Que nada! Ninguém queria isto. Nem as próprias mulheres. Lembro-me que uma moça ia assinar, mas seu namorado disse meia dúzia de palavras ao seu ouvido e ela desistiu. Percebe, mãe, como foi duro?

E tem muito mais! Você sabe! Isto são apenas alguns exemplos. Essa sua mania de querer se posicionar publicamente... Quantas brigas, mãe, por causa de política. (Você naquele tempo e, hoje, eu!) Lembro-me que argumentava sem medo. Era mulher valente! Mas - que diabos! - sempre indo contra a correnteza. Ao invés de defender aqueles de quem todos gostavam, defendia a parcela mais miserável da sociedade. Pra quê, mãe? Só para nos influenciar? Eu até que tento, mãe, mas não consigo segurar quando ouço alguma aberração do tipo “tem de matar essa gente” ou “só podia, mesmo, ser preto”. E você sabe: tem muito mais coisa.

E vou te contar uma coisa. Tenho recebido uma porção de dinheiro que veio de você. E não é herança, você bem sabe. Tratam-se das muitas reivindicações que fez à justiça, ao longo da sua vida. Você que era o que havia de mais ínfimo em nossa sociedade - uma pensionista de operário de chão de fábrica - nunca deixou de lutar pelos seus direitos. Você entrou com processos, esperou por décadas, foi-se embora deste mundo; e, hoje, eu e meu irmão recebemos um fruto material de sua luta. Pena que chegou tarde.

Percebe o que fez, mãe? Você nos ensinou a lutarmos pelos nossos direitos. E isso, você bem sabe, dá um trabalhão num país onde quem manda é essa gente poderosa – gente que você sempre nos ensinou a olhar com muito cuidado, lembra?

Não, mãe! Em vez de nos ensinar a vivermos uma vida tranquila e sem dores de cabeça, foi justamente passar essa ideia de que é preciso nos metermos naquilo que não é da nossa conta. E a termos esse sentimento de dor pelo sofrimento alheio. Sinceramente, às vezes sinto vontade de não sentir tudo isso.

Não entenda esse desabafo como uma ruptura. Apenas tinha de dizê-lo. Você nos fez vivermos uma vida inquieta, quando podia ter sido menos exigente. Mas, justiça seja feita, sei que não foi de maneira intencional. Você fez o que dava pra fazer, ne? E eu sou, hoje, o que deu pra ser. E acho que não há como mudar agora. Afinal, assim como você, já experimento hoje a sensação de ser velho.

E sabe do pior. Pela sua influência, acabei passando tudo isso aos meus filhos. Lembra-se, mãe, dos inúmeros almoços na sua casa aos domingos? Pois bem: eles pegaram muito do seu jeitão. Vai se meter a besta com um deles!

Sabe, fico até meio sem jeito de ter pensado e escrito tudo isto. É que não teve jeito. Uma vez eu li que um certo Martinho Lutero, numa dada situação, disse que fizera “somente o que conseguira fazer”; que não daria para ser diferente. Pois bem, acho que sou assim, mãe. Aliás, acho que nem precisaria ter lhe dito isto, né?

Bem, tenho quase certeza de que esta carta nunca lhe chegará às mãos. Mas, algo em mim me fez escrevê-la. Sabe como é aquele pé atrás ... E está escrito, pronto! E, como seu filho, não suportaria a sensação de apagar tudo ou de não publicar. Seria como fugir. E isso ...

Bem, você sabe ...

João Luiz Muzinatti - fevereiro de 2019

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