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Muito complicada!  Bem, isso não é tão ruim ...



Sala de aula! Primeiro dia de atividades de um sétimo ano. E vamos que vamos! Alunos alegres por reverem seus colegas, a sala repleta e aquela incômoda sensação – apesar dos quase quarenta anos de experiência – do famoso friozinho na barriga que nos costuma acompanhar em cada estreia. Afinal, é desejo de todo docente que o início seja sempre marcado por sucesso: isto parece que dará o tom no ano que se inicia. Bem ... Pelo menos, é o que parece. E, para que o curso de Matemática comece bem, nada como um momento que permita aos nossos alunos falarem sobre aquilo que pensam e desejam quanto à escola e às aulas de matemática. Então, entre outras perguntas sobre sua condição de estudantes, uma que foi direto ao assunto.

“Você gosta de Matemática? E por quê?”


As reações são muito variadas. Alguns, desejando impressionar, garantem que gostam e costumam se dar bem nas avaliações. Outros, mais prevenidos, preferem dizer que ora vão bem, ora vão mal, dependendo do assunto. E há aqueles que já vão avisando que não gostam; alguns dizem ter “ódio” da ciência dos números e das formas. Em todos eles, porém, aquele desejo (e, até, necessidade) de demarcar território perante mestre e colegas. Alguns querendo assegurar um lugar de destaque na nau do “povo eleito” da Matemática; outros, por sua vez, já garantindo que o nosso trabalho docente deverá ser grandioso se quisermos que antigas falhas – de sabe-se lá quem - não se transformem em fracasso. Do meu lado, a paciência de quem já está acostumado com essa ladainha, acompanhada de um profundo desejo de que a inspiração para colocações humanas e pedagógicas não me abandone nesse momento. E, como sempre acontece, nada acontecia. Entretanto, para minha surpresa, a calmaria foi quebrada. E como foi!


Um garoto de aparência tranquila e gestos camaradas, a quem chamarei Pablo, me respondeu que “a Matemática pode ser muito legal, ou muito ruim”. Diante de algo já mais elaborado – ali, de onde nada brotava - me alegrei em poder perguntar-lhe por que essa sua percepção. Então, saí questionando: “qual a razão pela qual a vê chata?”


“Ora, professor! Por que é muito complicada”. E sorriu tranquilamente, como se estivesse dando uma explicação quase que desnecessária. Neste momento, alguns dos colegas concordaram com sua fala; uns até aproveitaram o momento para dizer coisas do tipo: “e como”, ou “demais”. Sem fazer qualquer comentário, parti para a segunda parte da sua afirmativa: aquela que via minha área como algo “legal” de se estudar. “E por que também a vê como algo bom?”


O garoto pareceu tomar um pouco de fôlego e, com um discreto olhar desses que miram o infinito, voltou-se para mim, encarou-me tranquilamente e respondeu: “porque é muito complicada”.


Em muito tempo de profissão, sempre foi comum me surpreender (ainda bem!). Porém, ainda não havia me preparado (sinceramente) para ouvir tal afirmação. Os demais alunos, sempre satisfeitos quando algo de novo rompe com a rotina da sala, começaram a sorrir; a maioria querendo comemorar, ali, um daqueles absurdos que, via de regra, costumam quebrar o clima de exagerada seriedade em que as aulas de matemática geralmente acontecem. Mas, para mim, foi algo realmente novo, e não apenas curioso, mas encantador. Sim, pois, de uma maneira ou de outra, o jovem estudante traduzia com suas palavras todo o sentimento e a emoção que acompanham aqueles que enveredam pelo caminho dos números. Paixão, insegurança, gosto pelo novo, temor, amor ao conhecimento ... Ele captara tudo, com requintes de uma poesia despretensiosa e penetrante.


Era isso! Por mais que tentasse falar com os alunos depois desta frase, não consegui seguir por nenhum outro caminho que não fosse o do silêncio. É certo que muitos educadores de grande experiência poderão me criticar e dizer que, naquele momento, eu deveria ter ressaltado o valor do desafio na trajetória do aluno; poderia ter dito que devemos tentar nos aprimorar cada vez mais naquilo que estudamos ou com que trabalhamos, a fim de nos tornarmos mais e mais competentes; poderia até dizer que somente passarão nos vestibulares das grandes universidades aqueles que forem bons para solucionar os problemas mais “complicados”. Mas, não! Não se tratava disso. Aquele aluno estava nos dando uma aula sobre filosofia da matemática, ou até da ciência, se desejarmos. Afinal, o que tem feito o humano em sua histórica busca pelo conhecimento a não ser se deparar (sempre) com desafios “complicados” e, pior, muito complexos – palavra esta que incorpora, além das dificuldades, a multiplicidade de olhares que cada estudo científico requer? Não! Não bastaria, ali, ser pragmático. E decidi, apenas, dizer que “assim é a vida: as batalhas mais difíceis e os caminhos mais íngremes é que nos dão maior prazer”.


E, como um fiel militante da filosofia da ciência, certamente tratarei de retomar este tema com os meus alunos. Afinal, vale a pena pensar os objetos de nossos estudos a partir dos pensamentos que brotam diretamente dos principais sujeitos da brincadeira do ensino e da aprendizagem. Porém, dirijo-me, aqui, ao espelho: olho-me e reflito: estamos, nós que dizemos ensinar ciências (quaisquer que sejam elas), cultivando em nossos alunos esse espírito aventureiro e desbravador daquele que investiga o mundo? Pensamos que, talvez, a emoção que perpassou as vidas de gente como Tales, Galileu, Darwin ou Einstein não seria revestida dessa dupla visão (e desse duplo sentimento): de que aquilo que é ruim por ser “complicado” também poderá ser, pela mesma razão, valiosíssimo? Será que não seriam justamente estes os ingredientes que deveriam ser introjetados no espírito de quem sonhamos ver estudando, se interessando e se dedicando ao conhecimento?


Ao chegar em casa, pensei em minha vida de professor. Tantos anos de dificuldades tentando dar aos meus alunos as tais “motivações” para que sintam gosto pela investigação. Teorias e mais teorias pedagógicas revolucionárias. Psicologia e pedagogia unindo forças para que o aluno enfim “goste de aprender”. Movimentos pedagógicos de laboratório que tentam criar nos estudantes algum interesse por aquilo em que eles, a priori, não veem graça nenhuma. E tudo isso parecendo dar em nada.


Porém, (quem sabe) como dizia Epicuro, na Antiguidade, o segredo não seria simplesmente buscar o prazer em tudo aquilo que se faz? Só que, nesse caso, não se trataria de um prazer postiço, por mais variados que fossem os movimentos para engendrá-lo. Teria de ser algo natural; algo que se pudesse aprender desde cedo, com pais ou mestres. Um caminho certamente diferente deste que vem sendo seguido, hoje em dia, na intenção de se criar prazer onde o mesmo não existe, e que tenta fazer com que os alunos, ludibriados, acabem brincando de aprender e, com isso, consigam tão somente participar “ativamente” das aulas. Seria um prazer que nasceria – sim, por que não? – da dificuldade; de uma certa dor de fundo. De uma angústia humana pelo puro saber. Será isto absurdo?


Na ânsia de encontrar algum rumo para o meu trabalho, decidi observar minhas notas e buscar o verbete “prazer”. E lá estava ele, Nietzsche: com seu texto Vontade de Potência. O filósofo das marteladas parecia também ter participado da minha aula. E, tranquilamente, no aforismo 303 de seu livro, fazia eco das palavras simples de meu aluno, e me acolhia:


Na aspiração para um fim há tanto prazer quanto desprazer; daquela vontade o homem busca a resistência, tem necessidade de algo que se lhe oponha... O desprazer, obstáculo da vontade de potência, é, portanto, um fato normal, o ingrediente normal de todo fenômeno orgânico; o homem não o evita, ao contrário, tem contínua necessidade dele: qualquer vitória, qualquer sentimento de prazer, qualquer acontecimento pressupõe uma resistência vencida (NIETZSCHE, Vontade de potência, 2011, p.388).


Penso se adiantará retomar isto com meus alunos de 12 anos. Ou será que o melhor não seria falar com pais, psicólogos e, principalmente, professores de todas as séries? Estamos mesmo ensinando nossos alunos a investigar o mundo com o arsenal de emoção e vontade que a história registra, e que tal empreitada, sem dúvida, requer?


JOÃO LUIZ MUZINATTI

Janeiro de 2020

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