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MUITO, MUITO MAIS QUE UM JOGO!


Até que ponto aprender matemática na escola nos torna mais independentes, mais cidadãos? É fato que o conhecimento de números e formas, expressões algébricas e teoremas, nos faz muito bem – dadas as leis de nosso país – no sentido de alcançarmos a esperada aprovação no vestibular. E isto representa muito! Afinal, é a porta para o ensino superior, objeto de desejo de praticamente todos os jovens de nosso país – ou, pelo menos, de suas famílias. E, não há como negar, a matemática é parte crucial do rol de conhecimentos necessários para que se possa galgar mais esse importante degrau na vida do brasileiro – aliás, patamar quase inacessível para a maioria de nossos jovens; daí haver também o caráter de concorrência nessa empreitada. Ouso até dizer que, em grande parte dos exames vestibulares, a matemática é fator decisivo. Tem também o fato de ser a matemática instrumento de relacionamento humano, de sociabilidade, de inserção. Afinal, em atividades básicas como o simples ato de nos localizarmos no mundo, de nos comunicarmos sobre o tempo, ou em coisas mais específicas como comprar, vender etc, há uma dependência (nossa) das matemáticas. Mas, será que as coisas param por aí? Ou saber matemática é algo que nos torna mais seguros e realizados em nossa vivência social? Somos mais livres, mais completos enquanto pessoas? É bom saber matemática? Ou trata-se apenas de algo útil?

Em conversas com alunos do chamado ensino fundamental 2 – as séries que vão do 6º ao 9º ano – e do ensino médio, é muito comum ouvir reclamações do tipo: “para que devo saber resolver equações”, “por que tenho que decorar o Teorema de Pitágoras”, “onde usarei logaritmos na minha vida”, “que valor terá, para mim, saber trigonometria”? Já cheguei até a presenciar uma discussão entre duas alunas na qual uma garantiu à outra que “quando você passar no vestibular, terá de esquecer tudo; afinal precisará de um espaço na sua cabeça para aprender o que é necessário”. E o mais interessante de tudo. Conheço bem de perto gente que tirava notas altíssimas em matemática no terceiro ano do médio que, hoje, além de dizer que não se lembra de mais nada, afirma que jamais quer ver tudo aquilo de novo. “Tenho mais o que fazer”, garante.

Outro dia, ao analisar uma notícia sobre eleições com dois alunos de 8º ano, surgiu uma provocação. A notícia afirmava que um dos candidatos havia disparado nas pesquisas, distanciando-se do segundo colocado. A manchete era dada em letras enormes. Após a leitura atenta e a observação das curvas de preferência do eleitorado, quase não perceberam – senão com minha ajuda – que o referido periódico estava apontando o “crescimento” de um dos candidatos, quando o que acontecera de fato fora a despencada do outro. Na verdade, este caíra 8 pontos percentuais enquanto o primeiro crescera apenas 1 por cento. Os votos perdidos pelo líder foram incorporados, no caso, por mais três outros candidatos que ocupavam posições bem abaixo das suas. “E o que isto nos sugere?”, perguntei.

“Talvez que as coisas dão na mesma”, disse um deles. “Ou, talvez, que, pelo fato de um ter caído muito enquanto o outro subiu pouco, o jornal quis enfatizar quem tinha se dado melhor”, argumentou o outro. Disse-lhes que concordava com os dois, que as duas possibilidades eram igualmente válidas; mas tornei a provocar. Perguntei por que achavam que o jornal não se contentara em simplesmente dizer que o líder caíra muito e que o outro crescera pouco. Afinal, isto era o que de fato havia ocorrido, e que os leitores poderiam tirar suas próprias conclusões. Um deles, ao invés de propor outra interpretação, acabou me questionando.

“O senhor acha que o jornal pode estar sendo tendencioso?”

Não respondi de imediato, mesmo porque o outro aluno se adiantou: “claro! É isso! Estão querendo que pensemos que está subindo nas pesquisas, que as pessoas estão querendo que seja eleito, mas isso é mentira!” E, antes que esperasse pela opinião do seu interlocutor, completou: “acham que a gente é idiota!”

A conversa entre nós não foi muito longe, pois os dois acabaram concordando que, de fato, o jornal havia sido tendencioso naquele caso. Mas, surgia, ali, uma discussão nova. Um deles disse que falaria com seu pai, pois este havia estudado jornalismo. Queria saber se é mesmo possível que a imprensa distorça alguma notícia para beneficiar A ou B. E, “se isto for verdade”, disse o outro, “estão cometendo um crime, pois enganar as pessoas é inadmissível”. E o que era apenas um exercício de leitura de gráfico acabou se tornando uma reflexão sobre política, ética no jornalismo e pareceu não querer parar por ali. Pelo que disseram, aquilo ainda seria objeto de mais conversa.

Situações como esta costumam fazer parte de meu trabalho de professor de Matemática. Não me contento em avaliar o que conseguem saber sobre conceitos, procedimentos e aplicações da chamada “ciência dura”. Quero mais! Gosto de entender até que ponto o que apreendem nas aulas e estudos para provas consegue fazê-los pessoas melhores. Onde aquilo que é tratado no cotidiano de suas séries – mais especificamente na escola de educação básica – lhes proporciona um olhar novo, um gosto novo, um desejo novo pelo mundo em que vivem. Onde números, operações, conceitos geométricos ou articulações lógicas conseguem trazer-lhes um entendimento melhor de sua vida e, principalmente, perspectivas outras de superação daquilo que se lhes afronta - como incômodo ou desafio. Faço isto há bastante tempo. Porém, o que trago como resultado não me dá grande ânimo.

No mais das vezes, parece que o fazer matemática na escola não passa de um jogo – atraente para alguns e sufocante para outros -, ao qual todos sentem se inexoravelmente arrastados. Afinal, são aprendizes de mundo, e a matemática faz parte do saber que as contingências da história humana trataram de desenvolver e lhes impingir. Aprendem porque é necessário! E a escola perpetua esta prática quase que automaticamente. Burocraticamente. Mas, o mundo é mais, as pessoas são mais.

Como estes dois jovens, que, graças à analise atenta de elementos matemáticos, puderam perceber o quanto sua liberdade pode estar sendo ameaçada, muito poderíamos fazer com os números que nos caem nas mãos todos os dias. Afinal, nosso mundo pode ocultar segredos grandiosos em muitas das construções acadêmicas vazias com que brindamos estudantes todos os dias. “Exatidão”, “inexorabilidade”, “neutralidade” e todos os demais absolutos que fazemos ver em cálculos, diagramas e tabelas podem estar sendo apenas manobra diversionista; parte do jogo vazio que lutamos bravamente para tornar palatável a todos eles. Paliativos para um desconforto que talvez venha de enredos absurdos e mal explicados que todos devem engolir. Drogas para viver num meio que parece estar repleto de muita pirotecnia e nenhum sentido. E pensar que o mundo já mudou tantas vezes a partir de olhares mais atentos dados às tais “verdades” matemáticas. E quantas vezes matematizações complexas e vazias nos impediram de ver realidades simples, claras e transparentes? Será que não estaremos desprezando o poder humano de questionar ou explorar ao avesso a nossa matemática?

Certamente, todos já ouvimos dizer que “os números não mentem”. Que tal investigarmos tal “verdade”? Que tal fazermos com que aqueles que não suportam o jogo do dia-a-dia dirijam a próxima aula? Quem sabe não nos surpreendam com um novo sentido (que possam encontrar) para os estudos e a própria escola. Ou até quem sabe não encontrem sentidos novos para suas vidas. Bem que poderíamos deixar que os números falassem por si, e que nossos alunos os olhassem cara a cara. Talvez se indignassem com eles, ou com seus marionetistas. Por que não? Só para experimentar.

João Luiz Muzinatti

Outubro de 2016

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