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O CONHECIMENTO É IMPORTANTE! QUAL CONHECIMENTO?


Quem transita e milita na Educação tem sempre preocupações que vão além do seu cotidiano. Não estamos trabalhando e pensando apenas sobre os conteúdos que ministramos, as didáticas que usamos ou as visões pedagógicas que seguimos ou compartilhamos. Não basta “sabermos dar aulas”, prepararmos bem nossas atividades diárias ou fazer avaliações. É bem mais que isso!


O chamado educador ou, de forma mais direta, o professor, parece viver sempre numa corda-bamba virtual da qual observa uma paisagem que é, ao mesmo tempo, estranha, perigosa, contraditória e atraente. Então, ao mesmo tempo em que vislumbra um trabalho investigativo de alto nível, uma reflexão mais acurada e pertinente – tendo em vista a realidade dos estudantes – sobre as coisas da natureza ou das culturas, acaba tendo sua visão embaralhada por sectarismos, confusão e falta de sentido. Como professor, contemplo essa visão há quatro décadas. Assisto, vivencio e arrisco ações que possam transformar esse contexto nos meios que frequento. Porém, a perplexidade é o quociente.


Dialogando, certa feita, com parceiros da educação, e pensando nessas tais incoerências, também nos veio à baila a famosa e contemporânea apatia de nossos estudantes da educação básica. E a questão: como nossos alunos poderão estar (ou não) percebendo essas tais confusões presentes no ambiente que lhes é apresentado. Será que veem a educação como caminho para um futuro de sucesso pessoal e humano, uma via para sua formação como cidadãos? Ou será que poderão estar constatando justamente o contrário: a educação – e, mais precisamente, a escola - se afasta deles na mesma medida em que se autoafirma redentora e inovadora? E foi justamente nessa discussão que me lembrei de um fato marcante, o qual nunca me saiu da cabeça. Um desses momentos em que o absurdo e o desalentador – infelizmente – explodem. E decidi falar a eles.


O fato não é tão recente: ocorreu há uns 15 anos, e eu dava aulas particulares de Física. Havia uma aluna de seus 15 anos, a qual não conseguia “emplacar” nessa disciplina. Dizia não entender quase nada do que era falado em sala, e que, “nas horas de calcular” não tinha nem ideia do que fazer. Eu tratava de rever os conteúdos abordados e tentar provocar nela alguma nova percepção das coisas a fim de trazê-la para o contexto do que era trabalhado. E as coisas não decolavam. Porém, certo dia ...


Quase sem energias para participar de nossa aula particular, ela me contou que haviam discutido sobre “densidade” e, quando se falava em gelo e água líquida, o professor salientou a existência dos “três estados da matéria: sólido líquido e gasoso”. Foi quando uma inspiração me brotou. “Não são só três estados”, afirmei, “são cinco”.


Nesse momento, seus olhos brilharam, não sei se por perplexidade ou interesse. “Como assim?” Aquilo talvez fosse uma das poucas coisas que faziam sentido em sua já considerável carreira de estudante. “Sempre soube que eram três. No caso da água: gelo, água líquida e vapor. Aprendi sobre o orvalho, o gelo, a neve, a chuva ...” Que outros estados seriam esses? Sua mente, agora, estava ainda mais confusa. Talvez até já estivesse desconfiando de seu professor particular. Mas, tive uma ideia.


Pensei que, talvez, pudesse aproveitar esse fato para reverter sua situação nas aulas de física. Imaginei que, se levasse a informação correta (ou mais completa) à aula, talvez suscitasse uma discussão com os demais alunos e o professor; e isso poderia trazê-la de volta ao contexto da aula, do qual já se afastara havia bastante tempo. Após essa investida, pensei que, como participante efetiva da aula, sua motivação e sua concentração talvez pudessem passar a jogar a seu favor. E fiz algo que já estava bastante acostumado: mudei o assunto da nossa aula e fui direto à questão dos estados da matéria.


Disse a ela que, normalmente, abordamos os três tradicionais estados físicos com alunos mais jovens (crianças) pois trata-se de uma percepção mais concreta do mundo que experimentam. Porém, na sua idade já seria interessante saber o que, de fato, acontece com a matéria no que se refere aos seus estados físicos. E expliquei que havia cinco no total: os três conhecidos e bem perceptíveis, e mais dois: um bastante fácil de perceber e entender, o outro, apenas no caráter informativo: “o plasma e o superátomo”, falei.


Nesse momento, minha aluna me perguntou se esse tal plasma seria a parte “incolor” do sangue. Eu observei que se tratava apenas de coincidência entre os nomes. “O plasma”, expliquei de maneira bem superficial, “é um estado em que a matéria vibra exageradamente, bem mais que no gasoso, e que a temperatura e a luminosidade podem ser muito altas; um exemplo seriam as estrelas do céu. Por isso, a maior parte da matéria do Universo era plasma”. Disse, ainda que podemos “vê-lo, bem perto de nós, no fogo, nas lâmpadas fluorescentes ou em certas televisões”. Disse para ela imaginar: “se aquecemos a água, ela tende a se transformar em vapor; se continuamos aquecendo, a tendência é de as moléculas se agitarem ainda mais e mais, ‘quebrando-se’ em pedaços que até podem ser chamados íons, os quais caminham desordenadamente gerando luz e calor imensos”. Disse, ainda, que esse estado foi, de certa forma, descoberto antes da metade do século XX: não era uma descoberta recente.


Sobre o superátomo, disse que era uma descoberta bem recente. Nesse momento, fizemos uma rápida pesquisa na internet e constatamos que seu nome oficial é Condensados de Bose-Einstein. Após lermos o texto – este um tanto complicado – expliquei a ela que se tratava de um material que pode ser obtido em laboratório, caminhando em sentido oposto ao que se passa com a lógica da obtenção do plasma. “Trata-se de ir resfriando um certo material até chegar bem próximo ao que chamamos de ‘zero absoluto’, ou seja, um material sem nenhuma vibração. Nesse momento, as propriedades dos átomos já se perdem, pois não há mais transferência de energia de um átomo para outro, e o comportamento passa a ser parecido com o de um único, imenso e homogêneo átomo: um superátomo”. Entretanto, logo percebi que ela tinha mais dúvidas sobre esse quinto estado físico do que compreensão. E o sinal de alerta se acendeu na minha mente quando percebi que nosso horário já havia se esgotado e ela me perguntou o que seria essa história de “zero absoluto”. Então, tratei de combinar com ela que, em sua próxima aula de física na escola, perguntaria ao professor sobre o plasma, acerca do qual havia lido num site tratar-se do quarto estado da matéria.

Parecendo-me segura após nossas investigações e discussão, senti que talvez, e pela primeira vez, estaria indo à sua aula de física com ânimo novo e disposta a fazer parte daquele seleto grupo que gozava das delícias de entender como nosso mundo funciona. Pensei, ali, ter feito algo de muito bom a ela, ao professor e aos colegas, pois lançara mais um estopim de dúvida e curiosidade, ingredientes indispensáveis à investigação e ao aprendizado das ciências.


Na semana seguinte, ao olhar a agenda e ler seu nome, lembrei-me de nossa aula e comecei a ficar curioso: será que a estratégia dera certo? Na minha visão, seria exatamente o que ela precisava: fazer parte do diálogo, entrar na discussão, ser ouvida e respeitada num determinado campo do conhecimento. Seria sua salvação na física, e, quem sabe, em mais campos da ciência.


Quando chegou, ao contrário do que eu esperava, não comentou nada. Apenas disse que havia “aprendido” uma “coisa meio louca”. Que havia anotado tudo, mas que nem imaginava o que aquilo tudo queria dizer. Havia um emaranhado de cálculos, fórmulas ... rabiscos, desenhos de carinhas, bolinhas. O título: “Dilatação Térmica”. Enquanto reclamava, passou-me seu livro aberto exatamente numa página onde estavam os exercícios que recebera como tarefa. Nada de falar sobre nosso combinado de ela perguntar ao professor sobre o plasma. Enquanto me posicionava para atende-la com os exercícios, tomei fôlego e lhe perguntei: “como é, falou ao professor sobre o quarto estado da matéria: o plasma”?


De repente, pareceu lembrar-se de algo distante e sem importância. Ajeitou os óculos e me respondeu sem qualquer ânimo ou desapontamento: “ah! Falei, sim, logo no início da aula: levantei a mão e perguntei. Disse sobre o que lera e que gostaria que ele me explicasse melhor, pois aquilo era novidade para mim”. E parou de falar, trocando de caneta para que começasse a escrever. “E o que ele te respondeu”, perguntei-lhe mais imediatamente do que eu mesmo esperava. “Ah, disse que, sim: o plasma era um outro estado da matéria. Mas que não importava muito para nós, pois nem tínhamos muito contato com ele. Que aquelas coisas que estavam aprendendo eram bem mais importantes; e, além disso, caíam nos vestibulares”. Falou isto e já foi me perguntando como poderia aplicar aquela fórmula do "delta L" num certo exercício da tarefa.


Meu relato terminou aí. Um de meus colegas me disse, cético, que isso é normal: “o professor tem conteúdos a cumprir; não dá para ficar falando sobre coisas que quase não aparecem em provas. Disse que achava um absurdo o fato de terem abortado o interesse da garota, mas que “a escola funciona assim mesmo”. Outro, mais questionador, lamentou o fato de uma motivação repentina ter sido “jogada na lata do lixo em menos de uma semana”. A última a se manifestar, uma professora de língua inglesa, me dirigiu uma pergunta: “o que você acha que ele teria de fazer se dezenas de alunos, de repente, se animassem com o plasma e passassem a bombardeá-lo de perguntas?”


Nossa conversa continuou, mas, assim como o tema plasma havia sido abortado na sala de aula da minha antiga aluna, senti que a passividade e o conformismo tomaram conta de nossa roda. As coisas não eram novas; não havia nenhum fato insólito sendo relatado. A escola e seus protagonistas educadores não estava revelando nenhuma face nova, nem algo bombástico roubava a cena. Tudo andava normalmente. A ideia que provocara aquela discussão também se encarregava de concluí-la. “O mesmo de sempre”.


Ao me dirigir à minha casa, lembrei-me novamente da minha jovem estudante. Deveria estar com mais de trinta anos. Na certa já teria uma profissão. Teria cursado uma faculdade? Talvez sim, pois pertencia a uma classe social capaz de bancar seus estudos. A qual área teria se dedicado? Certamente, não fora a física. A física ficara para trás, assim como plasmas, superátomos e, com certeza, dilatações de sólidos ou coisas do gênero. Seu universo deveria possuir substâncias, palavras e pensamentos bem mais significativos para ela do que moléculas que vibram ou barras de aço que mudam de comprimento.


Então, talvez seu professor, e eu na retaguarda, tenhamos cumprido o nosso papel: nós a preparamos para ganhar um ticket (ou um passaporte) para ingressar na vida que conta: aquela que participa da realidade do mundo. Nós a ensinamos a seguir fórmulas, fazer cálculos e produzir respostas certas em exames. O mundo se encarregaria do resto. Foram, certamente, anos torturantes e longos aqueles que viveu antes de ver seu nome em alguma lista dos aprovados de algum vestibular. Porém, a esta hora, talvez estivesse mais feliz e sem exibir aquela fisionomia de torturada que eu contemplava todas as semanas. Agora, as coisas começam a valer. Afinal, que serventia pode ter um aglomerado de partículas que voam feito alucinadas? Ou, de que vale saber que há outras que nem podem se mover, e acabam se enroscando feito geleia disforme? De que vale saber sobre essa parte da física que nem costuma cair muito no vestibular?

João Luiz Muzinatti

15 / 06 / 2023






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