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MEU ATO DE CONTRIÇÃO



Anteontem, um amigo me fez uma dessas perguntas meio estranhas, nas quais não conseguimos pensar imediatamente, mas que, posteriormente, são justamente aquelas em que não conseguimos deixar de pensar. Questionou-me: “o que mais gostaria de dizer aos seus alunos, principalmente aos mais jovens”?


No momento da pergunta, olhei-o com estranheza e disse que não sabia, que nunca havia parado para pensar nisso. Além do quê, disse que falo tanto, sobre tantas coisas, a eles ... Não poderia pensar num tema, ou numa fala específica, a ponto de garantir que seria “o que mais gostaria de lhes dizer”. Ele explicou a pergunta: “na verdade, vocês devem ter uma razão maior pela qual desejaram ser professores. Então, pensei que talvez você pudesse ter algo muito sério e essencial sobre o qual gostaria de lhes falar”. Não obtendo sua resposta, tratou de mudar de assunto – o que até me deixou meio aliviado. Entretanto, desde que nos despedimos pelo vídeo do Whatssap, não consigo parar de pensar na sua questão. Afinal, não haveria nada de maior sobre o que desejasse realmente falar aos alunos? E veio a tradicional chuva de reflexões.


O que me incomodou, de cara, foi justamente não ter nada a lhe responder. Certamente, se estivesse dando uma entrevista ou participando de alguma mesa, trataria de confeccionar uma bela e retórica resposta. Deixaria os interlocutores satisfeitos com minha maneira de ver o mundo, e acabaria por inspirar jovens estudantes das licenciaturas a seguirem, com fé e determinação, sua carreira docente. Mas a pergunta havia sido feita por um amigo muito próximo. Ali não havia o compromisso formal com os valores da profissão, nem a constante sensação de que estou dando aula e preciso, sempre, pensar que minha fala ensinará, influenciará e despertará sentimentos. Então, o fato de não ter pensado em um tema foi terrível: não houve nada de prioritário que brotasse imediatamente de mim. Que raio de professor eu me tornei nestes quarenta anos de profissão? E tem mais!


Cadê meu compromisso com os elementos, os conceitos e os valores intrínsecos aos campos do conhecimento em que trabalho? Sim! E, por falta de um, são dois: matemática e filosofia! Não haveria uma fala específica de cada um dos dois saberes que pudesse ser “única” – uma para matemática e outra para filosofia? Ou, quem sabe, até mesmo um dizer híbrido, que pudesse incorporar aquilo que seria essencial nos dois saberes. Mas, nada! Até agora, nada! E já se vão dois dias.


Pensei muito nas minhas aulas. Tentativas de fazê-los pensar naquilo que caracteriza cada questão referente a este ou aquele tema. Conversa sobre os aspectos históricos que contribuíram para que determinado conceito fosse discutido, investigado e desenvolvido. Falas soltas sobre o dia-a-dia da escola, da cidade, do mundo. Às vezes, piadas, sempre oriundas de discussões formais e sérias da aula, que acabavam, via-de-regra, num estrondoso silêncio da sala. Críticas - veladas ou não - à instituição, ao governo, aos modismos ... Mas, uma fala essencial ...


Cheguei, até mesmo, a pensar que nunca honrei minha profissão, pois nunca me passou pela cabeça algo maior, que pudesse ter me conduzido à profissão. Algo assim como a sarça ardente de Moisés, a cegueira de Saulo ou a maçã de Newton. Que professor tenho sido eu nestes anos todos? Um burocrata da educação? Um alienado, um ... o quê?


Pensei, até mesmo, no que me trouxe para o mundo da educação. E me envergonhei com o que constatei. Prazer! Puro prazer em vencer o desafio de poder ajudar alguém a aprender algo novo, a ver o mundo com olhos novos. Prazer em perceber que minha atuação é capaz de mostrar debilidades, incoerências, dificuldades e impossibilidades nas coisas do mundo. E o mais gostoso: poder despertar meus alunos não só para essas constatações, mas para o desejo e a disposição para poder ajudar a vencer aquilo que a humanidade ainda não superou. Prazer! Que vergonha! Há quarenta nos venho usando minhas aulas e minha profissão para me divertir! E tanta gente – escolas, universidades, alunos, pais, mães – confiando em mim esse tempo todo. Não! Não pode ser isto. Não só isto!


Quem sabe tenha de gastar mais um pouco do meu tempo pensando. A verdade haverá de me aparecer. Daí, terei uma fala só, única, essencial. E não só levá-la-ei ao meu amigo, como finalmente farei uma live para a qual convidarei todos, todos os meus alunos e ex-alunos que conseguir localizar. Em clima de gala, soltarei a essência do meu trabalho, da minha fé na educação e no porquê maior de eu ter escolhido falar sobre matemáticas e filosofia. Sim: vai dar certo! É só questão de tempo. Tem de dar certo!


Em todo caso, se não lograr tal façanha, talvez o jeito seja mesmo me desculpar com todos eles, na mesma live, e dizer que estou parando. Afinal, a matemática e a filosofia mereceriam um tratamento mais digno: são saberes de milênios; envolveram gente muito importante; e não mereciam ter sido profanadas por alguém que as fez, esse tempo todo, servir para seu prazer e sua diversão. Apenas deverei ter um cuidado. Medir bem as palavras, pois não gostaria de transmitir nenhuma culpa aos queridos que, nessas décadas todas, também se divertiram comigo.



João Luiz Muzinatti - maio de 2020



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