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MATEMÁTICA: LÍNGUA DO MUNDO, E DE MUITO MAIS

“Tales pensou que todas as coisas estão cheias de deuses”. Aristóteles

No cotidiano da profissão de professor de matemática, certas coisas são muito comuns. Uma delas é, sem dúvida, a grande consideração que recebemos de nossos colegas, alunos, gestores, pais . . . As pessoas estão sempre nos olhando – e à disciplina que ministramos – como se fôssemos uma espécie de sábios. É comum ouvirmos que há coisas que fazemos dentro de nosso campo de conhecimento que “não são para qualquer um”. Outro dia, ouvi de uma professora que ela quer “distância com números”, mas que admira muito as pessoas que “conseguem entender e processar temas e conceitos tão complexos”. Não sei se tais comentários são sinceros, de fato. Parecem-me, sinceramente, até algo meio patético. A verdade é que a matemática ocupa sempre uma posição de isolamento dentro do universo do conhecimento, seja no que se refere à escola propriamente dita ou, de maneira mais geral, na própria leitura que se faz do mundo a partir de saberes humanos. E sinto que isto pode ser, mais que exagero tolo, algo muito perigoso. Explico.

É fato que, na escola, entre professores de áreas distintas e gestores, não rolam normalmente discussões espontâneas sobre temas geométricos, algébricos ou coisas do gênero. Percebo os pitacos que os professores de Geografia são obrigados a ouvir quando estão tratando de questões como desigualdade social, por exemplo. Ou os professores de Ciências, que têm de se controlar com certas interferências quando lidam com a teoria da Evolução. Mas, ninguém – ou, sem dúvida, pouquíssima gente – ousa discutir com os matemáticos sobre coisas como a necessidade de uma “condição de existência” em uma equação fracionária. As pessoas simplesmente ficam em silêncio. Quem está acostumado a frequentar salas de professores – desde o ensino fundamental até a universidade – já presenciou certamente colegas se aproximando de professores de Literatura, História, Artes ou Filosofia, a fim de se imiscuir nas discussões próprias das suas áreas. Mas, com a Matemática... Duvido! A ciência dos números e das formas parece ainda gozar da respeitabilidade imposta, há quase 2400 anos, pelo célebre filósofo Platão. Esse mesmo, que escreveu na entrada de sua Academia que as pessoas que não soubessem geometria deveriam se afastar daquele espaço. E parece, sim, que as ordens do antigo sábio de Atenas valem até hoje.

Mas, há um outro fator, também muito importante, que contribui para que a matemática esteja sempre posicionada fora do grupo comum dos saberes – e, aqui, não somente na escola. Em nossas casas, nos trabalhos, nas rodas informais, em toda parte. O poder dos números, da lógica e da verdade que tais elementos podem conter é gritante. E isto porque a matemática parece ocupar uma posição de juiz supremo para quaisquer questões – mundanas ou não – que encontramos todos os dias. Daí seu isolamento quase que óbvio. Acima das instâncias que perpassam o banal do dia-a-dia, confere validade, ou não, àquilo que o humano julga saber sobre a vida e o mundo. Assim como pensava Platão, é caminho e modelo do absoluto.

Desde que Galileu, no século XVII, afirmou que “o universo está escrito em língua matemática”, precisamos das verdades advindas dos números para que possamos viver mais tranquilos. Funciona quase como uma escritura sagrada. E, assim como acontece nas mais diversas religiões, seus sacerdotes são seres meio divinos. São oráculos do absoluto, que nos confortam ou até nos fazem mudar de vida. São confiáveis, afinal “os números não mentem”. Além do quê, em nosso mundo capitalista, essa “língua universal” - agora associada ao financeiro - adquire um caráter ainda mais sagrado, pois sentimos que seu domínio já constitui, em si, passo largo à felicidade.

Mas, até que ponto toda essa crença pode ser verdadeira? Será mesmo que os números não mentem? As pesquisas que vemos todos os dias retratam aquilo que o mundo traz escrito em si, de fato? Será que tudo pode ser matematizado? Vimos recentemente pesquisas eleitorais quebrando a cara de maneira escandalosa. Foram os números? Foram os operadores dos números? As pesquisas não quantificaram as variáveis corretamente? Que variáveis? E mais: alguém, aqui, já viu algum economista errar? Ou um meteorologista? Mas, eles não falam a língua do universo? Não nos garantem que estão tratando “matematicamente” seus dados e suas análises?

Muitas vezes, nos calamos quando, ao discordarmos de alguma posição em um diálogo, ouvimos a máxima: “os números é que estão dizendo isto”. Lembra uma citação bíblica, não? Uma evocação de um princípio de verdade. Verdade que confere autoridade. Autoridade que significa privilégio; e que gera, como corolários, é óbvio, distanciamento e exclusão. E, não nos iludamos: trata-se de mais uma manifestação de outro elemento sempre presente entre nós. Que jamais é falastrão. Que come pelas bordas, vem sempre camuflado e, muitas vezes, até piedosamente. Talvez exprima um termo importantíssimo de outra língua – esta, de sinais - que o universo também fala a todo instante: o poder!

Quando estou numa sala de aula, na presença de alunos que amam – e também daqueles que odeiam – a “língua do universo”, sinto não só dançarem à minha frente os triângulos, os círculos, as raízes e as derivadas que descrevem o mundo. Vejo, também, as falas prepotentes, as certezas de dedos em riste, os risos irônicos, as cabeças baixas, as exclusões, caracteres inequívocos a mostrar um mundo que vai além do físico, do econômico, do estatístico. A “verdade” que elucida sobre o mundo também hierarquiza a vida.

E os sacerdotes e noviços da verdade e do poder desfilam sua majestade. Leitores precisos do mundo, apoderam-se daquilo que faz com que as coisas caiam, o sol nos aqueça e as galáxias se afastem. Amantes da língua de símbolos do poder, apropriam-se de suas letras e consolidam a respeitabilidade e a reverência, para si e para os números e à lógica do mundo.

João Luiz Muzinatti

Dezembro de 2016


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