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SAUDADE DO FUTURO

Dizem que na minha idade começam a surgir os primeiros lampejos da falta de memória. Será mesmo? Bem, não sei se acredito nisto. Acho que, no meu caso, as coisas estão meio retardadas. Sinto-me em plena forma, quanto a isso. Lembro-me muito bem das coisas. Sou capaz de falar de cor e salteado as escalações dos clubes paulistas de 1970 a 1980, sem errar um nome. Sei de cabeça as letras das canções dos festivais de 66, 67 ... Posso dar aulas, sem preparar nada, sobre Nietzsche, Espinosa, Marx, Sartre, Galileu. Sei resolver problemas matemáticos a ponto de dar aulas a alunos que cursam os primeiros semestres de engenharia, matemática, física. Não! Esta constatação não serve para mim. Sei que estou sofrendo, sim, de um outro problema ligado à memória, mas não da falta dela. Meu problema é de saudade. Saudade crônica! Saudade do meu futuro!

Pode parecer loucura, mas sinto que minha memória me tortura constantemente. Me atropela, tira o sono e me faz, vez por outra, derramar certas lágrimas intrusas e mal intencionadas. Talvez o problema seja lembrar demais. Lembro-me daquele futuro que não volta mais.

"Erro de digitação", dirão alguns. "O seu corretor ficou doido, é vírus", me assegurarão certos jovens mais perspicazes. "Você quis dizer 'passado', certo?" Não, pessoal: é isso mesmo! Sinto falta do meu futuro!

Nada mais encantador que o futuro que me habitava quando tinha vinte anos. Vivia na minha mente, nos meus olhos, nas mãos, na fala. Pensava - e quase que me via vivendo de fato - no mundo do futuro. Ah! Que tempo lindo! Os jovens de hoje nem imaginam como era fantástico. Um tempo em que os horrores das décadas de 60 e 70 estavam completamente mortos e sepultados. Tempos de paz, democracia e justiça.

Lembro-me, saudoso, dos discursos que ouvia (e até ensaiava nas rodas) sobre o fim da ditadura, o advento da democracia, a igualdade. Que dias bons! O futuro era um lugar majestoso, e eu o dividia com amigos, namoradas, até com desconhecidos. Nele, a gente não via mais censura a peças de teatro, exposições, shows. Os tiranos idiotas já não davam mais o ar de sua desgraça. A justiça era justa mesmo! A pobreza definhava a olhos vistos. As escolas ensinavam a viver, não mais apenas a passar de ano. Os trabalhadores - todos eles - tinham dignidade e esta era compartilhada. Não havia mais preconceitos contra negros, pobres, mulheres, homossexuais. As pessoas não mais falavam em morte a torto e a direito como caminho para resolver os problemas do mundo. O ar era mais puro. Que saudade!

Sim! A memória está em dia, mas a saudade veio com tudo. Meu futuro ficou pra trás, e eu não consigo deixar de querê-lo novamente. Que triste! Amor perdido. Outro dia, um aluno me chamou de saudosista: "professor, o senhor está sonhando: veja esta lei que flexibiliza o conceito de escravidão: as coisas, hoje, são bem diferentes. Além do mais, quem manda ainda são os caras do passado". E uma notícia esquecida num canto de jornal mostrava que a quantidade de excluídos no mundo é cada vez maior. Sim, meu futuro ficou pra trás. O passado venceu: virou presente.

Sei que as novas gerações talvez nem tenham ouvido falar nesse meu futuro. Podem me chamar do que quiserem, mas, como eram bons aqueles tempos! Hoje, quase quarenta anos depois, ainda sinto aquela alegria de ser professor, ainda sonho com as pessoas querendo saber mais, transformar o mundo, viver tudo.

Pode ser coisa de velho. Pode ser anacronismo retorcido. Pode ser a sensação de que o bom da vida ficou para trás, e eu vivo de recordações. Hoje, tomo três remédios diferentes, todos os dias. Sem eles, já nem estaria mais aqui. Sou certamente alguém que vive de futuro porque as forças para o presente já estão fracas demais. Paciência!

Porém, o bom de tudo isto é que não sou um velho comum. Não necessito ainda de remédios para a memória - não, por enquanto. Quem sabe daqui uns anos. Porém, esta saudade do futuro me assola. Preciso fazer algo a respeito, urgente! Um médico, psicólogo, guia espiritual? Droga! Velho é coisa triste, mesmo! Será que há algum remédio que cure saudade do futuro?

João Luiz Muzinatti - maio / 2018


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