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DE REPENTE, RESPOSTAS, CAMINHOS... E SURGE HOBBES


“E dado que a condição do homem [...] é uma condição de guerra de todos contra todos, sendo neste caso cada um governado por sua própria razão, e não havendo nada de que possa lançar mão, que não possa servir-lhe de ajuda para a preservação de sua vida contra seus inimigos, segue-se daqui que numa tal condição todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros.”

HOBBES (O Leviatã)

- Professor! Me desculpe... É que... Será que tem um minuto?

- Claro! Na verdade, tenho esta horinha de folga e ia tentar organizar minha papelada. Mas, diga!

- É que, agora há pouco, na aula... O senhor falava de mundo, de ética... Sabe, não conseguia me concentrar. Ou, talvez fosse o completo absurdo que está acontecendo na minha cabeça. Não consigo parar de pensar na história da menina que morreu... Aquela, o senhor sabe... A que morreu de balas perdidas da polícia... O mundo, professor... Nossa cidade... O senhor falava em liberdade... Em escolha de caminhos... Não quis falar nada... Eu iria atrapalhar. Mas, sinceramente, professor: como podemos falar em ética, liberdade, convivência, num mundo em que as pessoas são mortas justamente por quem as deveria proteger? Não é louco isso? Me desculpe, mas acho que o senhor bem que poderia nos falar de coisas mais contextuais. Não quero ler Aristóteles e Kant, agora! O mundo precisa de um entendimento diferente, não acha?

- Bem, você sabe... A gente tem de ir por partes, com calma... Certas leituras são...

- Professor, desculpa! Andei lendo um livro do Marx em que ele dizia que os filósofos sempre interpretavam o mundo, mas que... o certo, mesmo... seria poder transformá-lo. Então, professor... A gente está vivendo uma barbárie. As pessoas andam pelas ruas com medo. Como posso entender isto? Quero que meus estudos me ajudem a ver este mundo. O mundo que estamos vivendo... Desculpa... O senhor me entende?

- Acho que sim. O que gostaria, afinal? Indicações de leitura?

- Alguma coisa que me ajudasse a pensar com mais clareza sobre este mundo.

- Bem... Deixe-me ver...

- Deve haver alguém, na filosofia contemporânea, que possa nos clarear as ideias. Sei lá! Algum...

- Hobbes! Thomas Hobbes de Malmesbury!

- Quê? Hobbes? Não, professor! O senhor está me gozando. Não quero ditadura para combater a violência. Queria acreditar em democracia. Esse cara propõe um estado autoritário, uma ditadura, para resolver nossos problemas de segurança. Eu conheço o pensamento dele. Não foi isso...

- Não, meu caro! Hobbes não é importante porque propôs uma via autoritária para organizar a cidade. Ele foi um dos pensadores que, a meu ver, deu início àquela coisa de se perceber o humano como alguém que vive perdido entre sua vida potencial e a vida em sociedade, na cultura; essa organizada, pacífica... Depois, vieram Schopenhauer, Nietzsche, Freud... Hobbes, meu caro! Ele viu longe! Tão próximo e tão longe...

- Mas professor, já vimos que o tal estado moderno começa a ser pensado como se o homem fosse o lobo do homem. Isto é muito duro! Não posso querer entender o que está acontecendo a partir de um pressuposto desses. Já se pensou além, não? Democracia, direitos humanos...

- Sim, mas o homem continua sendo o homem.

- E o senhor considera as coisas que Hobbes disse como corretas?

- Claro que não sou desses que pensam que a ditadura pode ser algo bom para as pessoas. Aliás, parece que tem bastante gente que pensa assim, hoje em dia... Mas, creio que, assim como outros, Hobbes entendeu um pouco (ou muito) de nossa condição. Ele fez análises precisas, que não podemos contestar, hoje em dia.

- Que o homem é mau?

- Não isto, mas que somos, em muito, desejos, paixões, vontade... Não há muita diferença entre nós e o resto da natureza, meu caro. E, quando fala em “estado de natureza” – sabe? Aquela barbárie, o homem contra o homem ... -, está nos dizendo que a nossa vida seria selvageria o tempo todo se não parássemos, um dia, e inventássemos um poder soberano: o Estado. Esperto ele, não? Mas, o importante é percebermos que a gente vive meio amarrada a normas acordadas entre os humanos, as quais são postiças, paliativas...

- Sim, mas... Para isto mesmo existe o estado. E, inclusive, já superamos Hobbes! Há o estado de direito democrático. E esse estado deve estar aqui! Afinal, ele mesmo nos disse que fazemos um contrato para garantir nossa segurança...

- Você o está vendo, jovem? Cadê?

- Como assim? O que está dizendo?

- Hobbes nos garantiu que o Estado funcionaria para nos dar segurança, um pouco de sossego, paz. E, hoje, você me para no corredor para me dizer que se sente afito, com um “absurdo acontecendo na cabeça”. Não está vendo nenhuma relação entre o pensamento de Hobbes e a sua (nossa) vida?

- Mas, buscar entender nossa vida de hoje com uma referência tão antiga, autoritária?

- Não busquemos autoritarismo no século XVII. Já existem idiotas suficientes que, hoje, depois de tudo que passamos, ainda vêm com certas bandeiras reacionárias e fascistas. Busquemos pensar o humano e o estado, hoje! Estudar um filósofo não é apenas conhecer conceitualmente seu pensamento, mas tentar encontrar como suas ideias podem nos ajudar a entender o nosso tempo, a nossa vida. Mesmo que seja como contrapartida. Pode ser que Hobbes não tenha sido digerido completamente. Nosso organismo pode estar ainda carente das vitaminas que suas ideias nos podem fornecer. E de sua energia!

- Hobbes como um instrumento de autoconhecimento?

- E de reconhecimento de nosso estado, de nossa vida política. Veja um exemplo: há dezenas de jornalistas sensacionalistas tentando associar a barbárie das ruas à crise moral, à “maldade humana”, à “falta de Deus”. Mas, o humano que mata é parecido com o que se indigna. Ambos tem de se sujeitar às tais decisões do contrato que, um dia, fizemos. Ambos são meio “lobos do [outro] homem”, no seu interior. Ambos desejam irrefreadamente! E esperam que o Estado, ou sei lá quem, lhes dê segurança. Mas, onde está o Estado quando policiais, que deveriam defender humanos de seus lobos, acabam se voltando contra e transformando-se em novos lobos? Será que o Leviatã perdeu sua força? Onde ele se esconde quando os policiais são tripudiados e mortos pelos marginais? Quando os criminosos são mais bem armados que a polícia – e, em muitos casos, até, municiados por mãos disfarçadas do próprio estado? Onde estará escondida a cópia do contrato social quando as pessoas não conseguem se entender - em relação à própria política - e se tornam neolobos delas próprias? O estado moderno hobbesiano, assim como a moral, o superego e os prozacs, não deveriam nos servir como inibidores do desespero? O que aconteceu com ele? E mais: será que a única coisa que restou do Leviatã foi a mão de ferro contra as pessoas; com autoritarismo explícito ou - como nos nossos tempos - de maneira disfarçada, cara de pau sinistra ou, mesmo, com certa indiferença gritante? Será que o famoso monstro bíblico, hoje, vive vestido de santinho, esperando sempre pelas oportunidades de, cada vez mais, encher e encher a pança.

- Não sei, professor...

- Sim! Não dá para saber. Talvez, por isso mesmo, a vida seja tão inquietante. Talvez, por tudo isso, você não tolere mais esse papo bonzinho e bem comportado. Acho que vale a pena você ir até seus livros e notas de aulas antigos e buscar o velho Hobbes. Mas não para pensar como ele. Se abrir os jornais (e as redes sociais), verá muita gente defendendo aquele aspecto de sua visão sobre combater o medo com instâncias atemorizantes. Não se trata disto. Proponho, sim, reler Hobbes pensando em entender-nos a todos, e ao nosso estado. Leia os primeiros capítulos. Depois, sobre o que ele pensa sobre o estado. E tente analisar os fatos, as pessoas e as instituições de hoje. Não sei se será uma volta no tempo. Talvez... Ou, poderá até ser uma “busca do tempo perdido”. Quem sabe?

- É... Nem sei no que pensar... Sonho com uma sociedade onde haja, pelo menos, justiça.

- Hum... Então que tal pensar nisto: “onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça”.

- Nossa!

- É do Hobbes! Bem, acho que tem mais gente querendo falar comigo.

- É a moça do departamento. Não é nenhum aluno.

- Eu sei. Mas, sabe como é... Há regras! E desconfio que ela está aí para me lembrar de que devo cumpri-las. Vá! Cumpra também as suas. Você é humano, cidadão! Acho que sua obrigação é saber mais, conhecer mais. Vai lá! Abraço!

- Até mais, professor.

João Luiz Muzinatti

Abril de 2017

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