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ENSINANDO PAIXÃO

No meu trabalho diário com ciência, filosofia e educação, deparo-me sempre com certas assertivas aparentemente inquestionáveis. “É preciso pensar bem, racionalmente, ter os pés no chão” é uma delas! Parece que o mundo dito sério não aceita - pelo menos para que a vida seja bem vivida e nos conduza a caminhos seguros – nada que possa ser confundido com loucura. Então, como contraponto, nos vem a ideia de paixão!

Fraqueza da alma! Irracionalidade! Falta de autocontrole! Desde que se articula esta palavra – que vem do grego páthos, ou do latim passio, num sentido de sofrimento, martírio, afetação ou exagero - a ideia é sempre de algo que, ao contrário de nos levar à realização ou ao encontro do “verdadeiro sentido de nossa vida” (sic), somente nos causa problemas. É comum ouvirmos que uma “pessoa apaixonada comete loucuras”, ou que “amor, ao contrário da paixão, é algo sólido, e que surge com muita vivência e reflexão”. A paixão não se confunde, em nosso mundo, com sabedoria. Somente o pobre do apaixonado crê que está certo em suas (“loucas”) decisões. A sociedade séria, produtiva e organizada não pode, de nenhuma maneira, guiar-se pelas paixões. Tudo isto não é novidade para você, leitor. Mas, de que tipo de sociedade estamos falando, afinal? O que seria viver bem em nosso pobre mundo? Como ensinar e aprender a viver melhor neste mundo?

Há uma semana, dia dos pais, fui ao estádio de futebol com meus filhos. Jogava o meu clube do coração, o qual sempre tentei colocar na prateleira do amor, mas ele vem insistindo em escorregar para o cantinho das paixões. Vale dizer que sempre sofri e vivi êxtases incomunicáveis por causa desse time de futebol: chorei, gritei, briguei, desisti, voltei... E, desta vez, durante uma dura e emocionante partida, algo me fez despertar para um novo questionamento. Uma ideia que ainda não havia me assaltado antes. Sobre essa hierarquia entre amores e paixões. Pela primeira vez ousei pensar que talvez pudéssemos inverter a ordem. Por que não a paixão no posto mais alto? Explico.

Acontece que meus filhos, criados e educados num lar comum, como – imagino - a maioria das crianças brasileiras, nunca foram chamados formalmente por mim e aconselhados a seguir esta ou aquela adesão clubística. Sempre viram, sim, meu imenso interesse por um dos clubes grandes do futebol paulista. Desde muito jovens, percebiam em mim inquietação, nervosismo e alegria – ou pungente tristeza – quando meu time jogava. Muitas vezes, até preferia me manter quieto em frente à televisão, não os importunando com minha torcida e meu estado completamente irracional por causa unicamente de um jogo de futebol. Porém, algo bem mais forte estava acontecendo ali.

Eles, de um modo que não posso explicar estavam captando tudo aquilo. Mais que isso, estou certo de que absorviam e incorporavam aquela paixão. Poderiam tê-la evitado; afinal, não trazia sempre coisas boas e, muitas vezes, tinha efeitos dramáticos. Porém, o certo é que optaram por aceitar aquela loucura toda. E, neste último dia dos pais, percebi de maneira bem clara tudo isso. Num jogo emocionante em que aconteceu de tudo – pênaltis contra e a favor, gols contra e a favor, viradas e uma vitória sofrida e heroica no final -, pude ver todas aquelas minhas reações antigas brotando deles. De repente, ficavam cabisbaixos, indo quase às lágrimas. Noutros momentos, me cobriam de abraços e gritavam a plenos pulmões. Ao final, estavam em êxtase e riam à toa. Sem perceber, durante todos estes anos, eu havia lhes ensinado paixão! Aprenderam comigo a amar irracionalmente um clube esportivo, uma camisa, um distintivo, uma história de menos de cem anos. Acidente de percurso... Ao invés de tanta coisa boa que poderia haver ensinado...

É claro, para quem me conhece, que as coisas não param por aí. Alguém, como eu, que vive há mais de trinta e cinco anos essa vida de professor, não fica indiferente a uma constatação destas. Então, tenho pensado muito desde o inesquecível jogo de futebol. Pensado em mim, na minha profissão, na vida daqueles que a sociedade insiste em chamar de educadores. Na nossa dificuldade pós-moderna de ensinar àqueles que parecem não entender por que têm de aprender tanta coisa aparentemente vazia de sentido. Sou daqueles tipos que não conseguem se desligar da história do pensamento quando o assunto é ensinar e aprender. E me vêm muitas inquietações e questionamentos. Vejamos!

Galileu, por exemplo, antes de se dedicar às experiências e aos escritos que nos trouxeram “novas ciências”, apaixonou-se pelo copernicanismo. Foi amante dessas ideias e viveu por elas. Antes dele, Bruno também havia sido tocado, e nem a ameaça da inquisição o impediu de pensar, falar, desafiar. Morreu pelo ser amado. Espinosa – um dos motivos de orgulho que sinto por ser humano – enfrentou de peito aberto – e movido pela paixão que sentia pelo conhecimento - religião, agressão física, condenação, excomunhão. Não caberia neste texto – e talvez numa enciclopédia – os exemplos que a história nos registra de paixões que fizeram homens e mulheres dedicarem vidas (e mortes) a conhecimentos e ideias novas. A paixão, como se costuma afirmar, é (sim!) coisa de vida e morte. A razão, certamente, foi uma invenção humana para que pudéssemos viver de maneira sóbria e organizada neste mundo passional, confuso e hipócrita. Mas, ouso perceber que a vida de verdade é feita de paixão. Ao contrário de muitas certezas bem comportadas, penso que pode ser o supremo regulador de nosso corpo e de nosso intelecto – aproveitando o ensejo das referências a pensadores modernos para usar esta dualidade.

Tenho pensado muito nos alunos que tive nessas décadas todas. Alguns não me saem da cabeça justamente porque aprenderam a se apaixonar pelo conhecimento. Aprenderam comigo! Dentro de uma monótona sala de aula, na qual eu apenas trabalhava com giz, lousa, fala e paixão. Não gostaria de mencionar seus nomes porque, certamente, esquecido que sou, poderei não me lembrar de muita gente. Foram pessoas que observaram aquele doido, ali na frente, discursando, cantando, dançando e se maravilhando com o que o humano conseguiu retirar do mundo e transformar em pensamento, conceito, tecnologia... Certamente, incomodaram-se de pronto; depois se acostumaram. Sentiram-se curiosos, sem chão, temerosos, incomodados e, finalmente, apaixonados. Eu lhes ensinei, sem perceber - como também aos meus filhos no futebol -, a paixão pelo saber, pelo humano que não se contenta em ser finito e vai em busca – neste mundo mesmo – de momentos de imortalidade. Aprenderam, enfrentando dificuldades, caras feias, cansaço... Assaltaram o castelo e resgataram o ser amado. Hoje, estão espalhados aí pelo mundo, aprendendo (mais e mais) e ensinando matemática, filosofia, física, química. E, sem sombra de dúvida, assim como meus filhos farão com os seus em relação a certo clube de futebol, serão mestres na paixão pelo saber.

Talvez, hoje, um pequeno tijolinho possa ser acrescentado ao edifício chamado educação. (Pretensão minha? Quem pensar assim, que pare de ler.) A paixão pode ser ensinada, e, quem sabe, valha mais que a razão e que o amor sóbrio dos ocidentais. Porém, temo que isto só aconteça inconscientemente. E paixão, assim como qualquer outro conteúdo, só pode ser ensinada por quem a possui incorporada em grande escala. O que fazer, então, na prática? Bem, trabalho para os nossos psicólogos e antropólogos da educação. E, para quem educa no dia a dia, alguns questionamentos. Será que é possível educar sem ensinar nenhuma paixão? Que paixão estaremos ensinando diariamente? Por quais paixões vivemos... e morremos?

Em nosso tempo, os livros de poesia talvez estejam entre os mais baratos. Poucos poetas contemporâneos são personalidades. As próprias canções que fazem sucesso, hoje, têm pouca poesia de fato presente em suas letras. Porém, sinto que os poetas – quem sabe? - possam ser os melhores educadores nos tempos que virão. Afinal, parece que a racionalidade está na UTI, em coma profundo.

Como grande parte de nossa professorada, aqui estou buscando nos alfarrábios alguma inspiração para fazer meus alunos aprenderem. E, após um simples jogo de bola, um outro livro se abre à minha frente. Ensinar e aprender paixão!

Por falar em poesia, o chefe Vinícius disse que “é preciso paixão”. E, por falar em paixão, lá vou eu, estuda-la por todas as partes. Nos livros, nos filmes, nas canções, nos poemas... na contemplação do nascer ou do por do sol... E, é claro, nas partidas do meu amado São Paulo Futebol Clube.

João Luiz Muzinatti

Agosto de 2017

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