QUEM SOU EU NESTA VIDA TÃO LOUCA
- Júlia Muzinatti
- 13 de jan. de 2019
- 5 min de leitura
“Quem sou eu nesta vida tão louca”[1]
Na verdade, considero-me um outsider. Bem, o certo é que costumo pensar assim – e o digo às pessoas, no dia-a-dia. Não estou vinculado a nenhuma corrente específica – partidária, por exemplo. E tal constatação me dá uma certa tranquilidade: consigo falar (quase sempre) de maneira sóbria sobre os vários assuntos sem que me possam acusar de preferências, militâncias e ódios específicos – porém, é claro, as pessoas continuam a me acusar de tudo isso; mas dou de ombros. Sim: é confortável poder falar o que quero sem que seja acusado (pelo menos por mim mesmo) de partidarismo. Mas, sinceramente, tenho pensado muito nisto.
O que é um outsider? O que dizem as definições? O dicionário Houaiss, por exemplo, tem um pequeno verbete, no qual há três definições: “indivíduo que não pertence a um grupo determinado”; “investidor que não tem acesso às informações de uma empresa”; “competidor sem probabilidade de ganhar”, “azarão”, “zebra”. No Cambridge Dictionary, aparece: “a person who is not involved with a particular group of people or organization or who does not live in a particular place” [alguém que não esteja envolvido com grupo específico de pessoas ou organização, ou que não viva num lugar específico] e “ a person who is not liked or accepted as a member of a particular group, organization, or society and who feels different from those people who are accepted as members” [alguém que não seja aceito como membro de certo grupo, organização ou sociedade e que se sente diferente de seus membros]. E há, pelo mundo, vários estudos mencionando tal expressão. Porém, para poupar o leitor, vou direto às minhas dúvidas e reflexões.
Do ponto de vista de minha autoimagem e, por que não dizer, da minha autoestima, é muito envaidecedor me ver como esse outsider. Isso me dá até um certo sentimento de superioridade. “Ah! Consigo pensar além das paixões”. Porém, pensando bem, será que isto vale mesmo a pena? Estou me colocando na posição mais importante ou na mais cômoda? Para o mundo em que vivemos, o que seria preferível? É essencial contar sempre com carinhas bonitas a nos olhar em ocasiões de festa, mesmo tendo de engolir certas aberrações – do ponto de vista de nossas emoções, repertório e convicções, é claro! – que as mesmas proferem em nossa presença? É bastante cômodo, sem dúvida, não nos vincularmos a um caminho; é uma forma certeira de não colecionarmos desafetos ou de não sermos estigmatizados. Mas, de que adianta isso, afinal?
As coisas acontecem, no mundo, guiadas pelo poder. E sabemos muito bem que o poder pode ser tudo, menos imparcial. Há grupos, sem dúvida, vinculados a postos específicos de cada núcleo de poder. Será que é possível, então, nos desvincularmos completamente de algum poder específico, mesmo sabendo que este possa estar vinculado à vida ou à morte, por exemplo (extremo)? Além do quê, vejamos as definições que mencionei acima.
O Houaiss aponta que, apesar da nobre condição (que podemos ver) de um indivíduo não se deixar aprisionar por um grupo, há inconvenientes. Se for um investidor, estará em desvantagem pelo fato de ser solitário. E, nos jogos da vida, será sempre alguém sem reais chances de se dar bem; um “azarão”! Destas poucas observações, a impressão que fica é a de que o outsider é sempre um mero observador, que não joga, não participa, não se arroja. Ora, a vida não é apenas contemplação, conceituação; a vida é práxis - em qualquer sentido que coloquemos essa reflexão. Viver é esperar que o mundo aconteça, apesar dos problemas que vamos encontrando e dos caminhos que imaginamos como alternativas? Além do quê, o outsider parece não jogar de fato: não perderá, mas nunca poderá mesmo sentir o sabor da vitória. Será que estou vendo pelo em ovo? Pode ser que eles (os tais pelos) sejam tão pequenos que se tornam quase invisíveis. Assim, fará mal para minha visão ficar tentando identifica-los nas cascas da vida. Mas, para quem suportou minha fala até aqui, vou um pouco mais longe.
O pessoal de Cambridge fala em “não viver num lugar específico”. E também em “não ser aceito”. Ser alguém errante, andarilho. Mas, será que sou assim, em algum aspecto que queira considerar da minha vida? Acho pouco provável. Afinal, sou ateu, e pertenço, portanto, à casa dos que não creem – ou à estrada por onde vagam. Odeio as ideias absolutas, e pertenço aquele rol de pessoas que gostam da vida porque é vida, e não porque um dia se tornará eterna. Sou francamente solidário prioritariamente à causa dos que não sabem se irão comer hoje, não podendo me emocionar com quem estabelece que nosso grande problema é a “dificuldade de ser patrão”, por exemplo. Considero que as injustiças sociais são inadmissíveis, não podendo fazer parte de grupos que, com a maior sinceridade e boa fé, manifestam que “é uma pena ver que o mundo sempre foi assim”. Sou contrário a essa noção arcaica de pátria, e percebo que faço parte de um número cada vez mais reduzido de pessoas que já pararam para refletir sobre isto. Odeio “Andança”, e jurei que vou me trancar no banheiro do próximo sarau ou fondue em que, por falta de criatividade, as pessoas resolverem cantar (em uma ou duas vozes) essa famigerada canção. Sou são-paulino, e jamais me sentiria confortável na galera da fiel, tendo de escutar e até de gritar o “vai curintia”. Há coisas que não poderia suportar, e, para as quais, jamais poderia manifestar-me como neutro.
Porém, alguns leitores podem estar pensando que estou dirigindo retoricamente meu argumento. Afinal, dirão eles – como eu também sempre digo – que ser outsider é poder ter suas visões livremente, sem vínculos, sem pressão, com independência. E estou de acordo. Porém, pergunto: será que não é o mesmo que optar por um enfraquecimento? Até onde minhas aulas e meus textos estão mudando as pessoas e o mundo? Não seriam meus valores mais fortalecidos se os expressasse em uníssono com muitos que pensam igual? Não teria mais chances de ajudar a mudar a realidade do que as tenho hoje?
Se, após estas reflexões, alguém me indagar novamente, creio que vou responder, ainda, que me considero outsider. Mas, certamente, meu cérebro e meu peito não param. Assim como as discussões e decisões, na política, por exemplo, que andam de vento em popa. E, neste caso, não dá para ignorá-la nem deixar de sentir posicionamentos a brotarem por todas as minhas células. Olhando para a situação do povo brasileiro, é impossível não ver o desespero em que vive, hoje, a comunidade LGBT; não dá para não morrer de medo de me deparar com um motorista idiota que ande regularmente armado; não é possível esquecer os indígenas que, neste momento, devem estar sendo ameaçados e até agredidos por violências não noticiadas; não dá para não pensar em mim mesmo e nos meus pares professores que, ao que parece, estaremos sempre na condição de suspeitos de “doutrinação marxista”, e correndo riscos iminentes. Não dá para ficar calado! Agora, acho que não dá mais!
Então, sim, quero pensar livremente, sempre; mas gostaria também de poder ajudar a construir algo melhor enquanto viver. (E, no próximo ano, ainda que não queira, serei incorporado ao grupo dos sexagenários.) Portanto, minhas questões não irão parar. Seguirei sempre desconfiando e tendo dúvidas a meu respeito. Afinal, quem sou eu nesta vida? Tenho lugar neste mundo?
Quando era mais jovem, cansei de ver minha mãe em discussões acaloradíssimas com o pessoal da mercearia próxima de casa. Às vezes, ficava semanas sem falar com o dono. E sempre se justificava: “meu partido e meu time eu defendo até morrer”. E foi sempre assim: a Dona Irene nunca teve de perambular pela vida. Teve sempre seus lugares bem definidos. Até o fim!
João Luiz Muzinatti - janeiro de 2019
[1] Da canção “Gabriela”, de Antônio Carlos Jobim

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